Naquele tempo o mundo era jovem e enorme. Ou nós éramos pequeninos. Mas lembro-me perfeitamente.
Os principais cafés daquela cidade perdida entre o mar, a serra e o rio, o Nicola e o Oceano, tinham orquestras, jazzbands dizia-se. E nas esplanadas do “picadeiro” as pessoas vestiam-se com cuidado, pelas tardes e pelas noites.
Eu lembro-me de algumas tardes na “cervejaria Cristal” (a Agustinha) em que um grupo de jovens médicos, algum advogado e um professor e um engenheiro, bebiam a cerveja bem tirada, a única digna deles e dos seus sonhos, e conversavam, e riam, e esperavam um mundo novo para eles e para a criançada onde eu me incluía.
E a minha mãe, lindíssima (e não sou eu que o digo, atenção, que para os filhos as mães são sempre bonitas), bebia um gole da cerveja do meu pai e dizia na inocência dos seus vinte e três anos (já eu ia com quatro!) que aquilo lhe fazia doer todos os ossinhos do corpo!
E nós corríamos por aquele bendito quadrilátero de ruas fechadas ao trânsito, só parando para mendigar uma bola de Berlim (só uma!) e volta a correr. Anos mais tarde, haveria de descobrir que o verdadeiro nome daqueles bolos era Pffannkuchen em Berlim e Berlinerpffannkuchen no resto do mundo. E nessa cidade, onde perdi um bom par de ilusões, lembrei-me dos anos inocentes, ao ver senhoras de chapéu e luvas nas esplanadas da Kurfürstendamm.
Outras vezes os crescidos iam para o Pátio das Galinhas, o pátio do Casino Peninsular, que a estupidez construtiva de um punhado de imbecis destruiu sem perceber que ao destruir essa esplanada, algumas casas, um enorme parque e dois cinemas destruíam a cidade e tudo o que durante dezenas de anos a tinha definido. Foi nesse pátio que a tia Néné vendo um homem de casaco branco de costas o tomou por um empregado e encomendou o seu chá. Azar dela: era o Toninho Neves, nosso vizinho, que amavelmente lhe disse que o casaco era branco e de bom alfaiate mas que ele não servia chás.
Desta história não me lembrava mas a minha mãe, ainda hoje a conta, com uma imitação tão perfeita da estupefacção da irmã e do embaraço do Toninho, que me faz inveja.
E aproveitando esta boleia do Toninho, convém lembrar que o Verão naquele tempo durava três meses longos, o que permitia a realização de cem jogos de futebol na praia, a centenas de banhos de mar, a fugas audaciosas pela janela do quarto onde nos obrigavam a dormir a sesta! Era a hora em que a praia era melhor porque sabia a proibido, a aventura, a desafio.
Adolescentes, íamos numa ranchada deste a “praia”, nossa zona, até ao centro da cidade, num percurso que só pareceria errático a quem desconhecesse os subtis segredos da juventude, a descompassada geografia dessa feliz ignorância que depressa se perderá quando o Verão se encolher até não ter mais de duas ou três semanas.
Passaram-se já muitos verões depois desses que recordo com uma desnorteada ternura. Os amigos que bebiam cerveja na Agustinha já não estão entre nós. Nem um! Morreram todos antes de chegar aos setenta, morreram a contra-corrente, morreram e não tiveram substitutos à altura, tristemente o digo.
O mundo alargou-se para nós meninos desses anos dos fins de quarenta e princípios de cinquenta. Agora as férias, quinze dias, três semanas, passamo-las em sítios absurdos aos quais nada nos liga, a que provavelmente não voltaremos, praias perdidas num mapa que já não sentimos nosso e que, de facto, não o é.
Escrevo isto enquanto na televisão passa Paco Ibañez cantando “la poesia es una arma cargada de futuro”. E isso atira-me para um verão quentíssimo em Madrid, num Madrid que continuava subterraneamente a resistir, e depois de assistir casualmente a uma manifestação gigantesca a favor de um morto vivo chamado Francisco Franco, que morreria logo a seguir. Depois de ver a manifestação, gigantesca repito, encontrei-me com militantes de esquerda num pequeno bar que tranquilamente diziam que antes de acabar o ano Franco apenas seria uma recordação. E eu, metido naquela onda mansa, propus que Franco morresse no dia dos meus anos. Foi por pouco: morreu seis dias antes do meu trigésimo quarto aniversário. Bem se vê que os ditadores até na morte nos fazem fintas.
d'Oliveira
Os principais cafés daquela cidade perdida entre o mar, a serra e o rio, o Nicola e o Oceano, tinham orquestras, jazzbands dizia-se. E nas esplanadas do “picadeiro” as pessoas vestiam-se com cuidado, pelas tardes e pelas noites.
Eu lembro-me de algumas tardes na “cervejaria Cristal” (a Agustinha) em que um grupo de jovens médicos, algum advogado e um professor e um engenheiro, bebiam a cerveja bem tirada, a única digna deles e dos seus sonhos, e conversavam, e riam, e esperavam um mundo novo para eles e para a criançada onde eu me incluía.
E a minha mãe, lindíssima (e não sou eu que o digo, atenção, que para os filhos as mães são sempre bonitas), bebia um gole da cerveja do meu pai e dizia na inocência dos seus vinte e três anos (já eu ia com quatro!) que aquilo lhe fazia doer todos os ossinhos do corpo!
E nós corríamos por aquele bendito quadrilátero de ruas fechadas ao trânsito, só parando para mendigar uma bola de Berlim (só uma!) e volta a correr. Anos mais tarde, haveria de descobrir que o verdadeiro nome daqueles bolos era Pffannkuchen em Berlim e Berlinerpffannkuchen no resto do mundo. E nessa cidade, onde perdi um bom par de ilusões, lembrei-me dos anos inocentes, ao ver senhoras de chapéu e luvas nas esplanadas da Kurfürstendamm.
Outras vezes os crescidos iam para o Pátio das Galinhas, o pátio do Casino Peninsular, que a estupidez construtiva de um punhado de imbecis destruiu sem perceber que ao destruir essa esplanada, algumas casas, um enorme parque e dois cinemas destruíam a cidade e tudo o que durante dezenas de anos a tinha definido. Foi nesse pátio que a tia Néné vendo um homem de casaco branco de costas o tomou por um empregado e encomendou o seu chá. Azar dela: era o Toninho Neves, nosso vizinho, que amavelmente lhe disse que o casaco era branco e de bom alfaiate mas que ele não servia chás.
Desta história não me lembrava mas a minha mãe, ainda hoje a conta, com uma imitação tão perfeita da estupefacção da irmã e do embaraço do Toninho, que me faz inveja.
E aproveitando esta boleia do Toninho, convém lembrar que o Verão naquele tempo durava três meses longos, o que permitia a realização de cem jogos de futebol na praia, a centenas de banhos de mar, a fugas audaciosas pela janela do quarto onde nos obrigavam a dormir a sesta! Era a hora em que a praia era melhor porque sabia a proibido, a aventura, a desafio.
Adolescentes, íamos numa ranchada deste a “praia”, nossa zona, até ao centro da cidade, num percurso que só pareceria errático a quem desconhecesse os subtis segredos da juventude, a descompassada geografia dessa feliz ignorância que depressa se perderá quando o Verão se encolher até não ter mais de duas ou três semanas.
Passaram-se já muitos verões depois desses que recordo com uma desnorteada ternura. Os amigos que bebiam cerveja na Agustinha já não estão entre nós. Nem um! Morreram todos antes de chegar aos setenta, morreram a contra-corrente, morreram e não tiveram substitutos à altura, tristemente o digo.
O mundo alargou-se para nós meninos desses anos dos fins de quarenta e princípios de cinquenta. Agora as férias, quinze dias, três semanas, passamo-las em sítios absurdos aos quais nada nos liga, a que provavelmente não voltaremos, praias perdidas num mapa que já não sentimos nosso e que, de facto, não o é.
Escrevo isto enquanto na televisão passa Paco Ibañez cantando “la poesia es una arma cargada de futuro”. E isso atira-me para um verão quentíssimo em Madrid, num Madrid que continuava subterraneamente a resistir, e depois de assistir casualmente a uma manifestação gigantesca a favor de um morto vivo chamado Francisco Franco, que morreria logo a seguir. Depois de ver a manifestação, gigantesca repito, encontrei-me com militantes de esquerda num pequeno bar que tranquilamente diziam que antes de acabar o ano Franco apenas seria uma recordação. E eu, metido naquela onda mansa, propus que Franco morresse no dia dos meus anos. Foi por pouco: morreu seis dias antes do meu trigésimo quarto aniversário. Bem se vê que os ditadores até na morte nos fazem fintas.
d'Oliveira
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