12 agosto 2006

Postais do Sul - II

Magnus e os Olhos d' Água

Numa decisão súbita, inspirada na vontade de jantar e na não menos insidiosa vontade de, no pouco que restava de noite disponível, deixar uma vislumbre que fosse do “meu” lindíssimo Algarve àquele jovem estrangeiro a quem trazia de boleia desde Lisboa e que partiria já no dia seguinte rumo a outras paragens, eis-me a inflectir caminho mesmo a tempo de, ao invés de rotineiramente prosseguir para Vilamoura, descer aos Olhos de Água, onde ultimamente evitava ir.

O jovem, como convinha à situação de quem, com um parquíssimo orçamento, amealhado com esforço em trabalhos não qualificados, viajava há quase seis meses por lugares tão distantes e tão diferentes da sua terra natal (uma pequena vila no norte da Suécia) como a Índia, a Tailândia, a Malásia… nada sugeria e a nada levantava objecções.
Transportava-o a rogo da minha filha, que o conhecera e a quem dera abrigo por uma semana devido a circunstâncias inesperadas que não vêm ao caso (e, imagine-se, passam por encruzilhadas várias entre este nosso cantinho à beira-mar, Marrocos, Moçambique e países limítrofes) e que se condoera ao sabê-lo plantado na estação de serviço de Palmela havia já três longas e escaldantes horas, sem conseguir inspirar confiança em nenhum dos inúmeros viajantes a caminho do sul, pese embora a sua pele branca, os seus olhos azuis, o seu cabelo louro e o seu aprumo e asseio.

Ainda assim, pouco conhecedora deste tipo de viajantes – muito embora ele já me tivesse referido que, mais do que as paisagens, o que realmente o entusiasmava era o contacto com diferentes culturas e com as pessoas (ou não fosse ele estudante de sociologia) - lá fui avisando que queria mostra-lhe um sítio bonito mas que corríamos o risco de ter de voltar para trás por falta de estacionamento, porque a construção no Algarve… blá blá blá. Mas, até por a hora já tardia desaconselhar buscas mais longínquas de outros locais de beleza comestível, avancei intrépida pelo pricipal acesso à praia, tornado ainda mais estreito pelos carros estacionados de ambos os lados, à continuada falta de alternativa parqueante.
Do lado esquerdo ergue-se agora um hotel que na acentuada pendente se agiganta, qual muro de betão a escarnecer do que já foi uma minúscula aldeia de pescadores a qual, pese embora a construção há muito desenfreada para lá das pequenas casas bordejando o lado direito da estrada, ainda matinha uma aparência de equilíbrio naquela rua que é o coração daquele lugar que deve o nome às nascentes de água doce que borbotam à beira-mar.

Mas eis-me, afinal, a maravilhar-me com a beleza daquela pequena praia, que marca a transição entre os imensos areais do barlavento e as encantadoras prainhas escondidas por entre rochas recortadas que se estendem até à zona da Galé, já a sotavento. Praia agora iluminada por forma a realçar ainda mais os seus recortes rochosos e a permitir as brincadeiras de crianças supervisionadas pelos adultos que se passeiam no recém-construído calçadão, interdito a carros e que dá acesso aos dois restaurantes sobranceiros à praia de que o Carteiro já falou aqui. Por ficar logo ali à mão abancámos no La Cigalle (aquele que tanto desgostou o nosso Carteiro), onde uma pequena mesinha para dois mesmo junto à balaustrada sobre a praia parecia esperar-nos. Serviço simpático e eficiente qb, talvez potenciado por alguma rebeldia e mostra de conhecimento que dei do que é a tradição do bem comer algarvio (até uma “saladinha montanheira” para acompanhar o peixe assado nos fizeram, pois geralmente não se dão a esses “luxos”, que esta salada leva mais tempo a fazer que a banalíssima salada mista de todos os restaurante portugueses…)
As ameijoas estavam óptimas, a sangria de vinho branco idem, o peixe e a salada também e a sobremesa igualmente. A maré vaza, transfora a pequena praia num areal aceitável, o marulhar das ondas abafando algum excesso de entusiasmo das crianças brincalhonas, os namorados passeavando-se em busca da discrição de uma falésia menos iluminada e eu ouvindo histórias vividas em selvas inóspitas, em rios com sanguessugas, em aldeias hindus, em campos de ajuda humanitária, em Varanasi (um dos lugares onde a solidão mais pesara ao jovem que era mesmo muito jovem, msis jovem que o meu jovem filho). Horrorizei-me ao saber que contraíra uma espécie perigosíssima de malária, mau grado a medicação preventiva tomada e apertou-se-me o coração também ao pensar nos pais ao sabê-lo só e indefeso num qualquer hospital malaio, a muitos quilómetros e coroas de distância.
Sobreviveu a estas e outras maleitas, ficou uma fragilidade geral e uma fragilidade digestiva que o repasto não incomodou.

Ao pagar a conta pensei, por um segundo, no “aspecto”que poderia dar aquela cena e ri-me de mim para mim, não olimpicamente indiferente ao eventual diz-que-diz, mas sim impante por me dar o gozo de me estar nas tintas mesmo sem ser em terra alheia.
Rumei ao meu cantinho algarvio, contente por ter encontrado lugar para estacionar o carro na sobrelotada Olhos de Água, por ter encontrado uma terra e uma praia mais cuidada, limpa e bonita do que me lembrava, por ter proporcionado ao jovem hitchhiker uma boa refeição e por ter podido embandeirar em arco com as belezas “da minha terra ao sul”.
As únicas que aqui terá visto, por certo, pois no dia seguinte desistiu de visitar outros locais, receoso de ter o mesmo azar da véspera, em Palmela. Por isso lá o deixei numa estação de serviço que me pareceu propícia a um qualquer encontro com um camionista que rumasse a Espanha, daqueles a quem o excesso de quilometragem solitária solta a língua à vista do primeiro interlocutor interessado – o ponderado objectivo do jovem sueco naquele dia era chegar ao país vizinho, onde o aguardavam, e poder continuar a conversar sobre a vida em cada país no que, no seu dizer, os camionistas são um must.

O Magnus não deu mais notícias, pelo que concluí que desta vez não fora difícil apanhar boleia. Estará talvez já por essa Europa mais a norte, que o regresso a acasa urge, o dinheiro mesmo mesmo a acabar e a família está saudosa. Talvez já para o ano os pais vão viajar pela primeira para fora da Suécia. Querem ir para um sítio bem diferente do seu pais, com sol, mar e um passado histórico e cultural diverso. Ele, que gostou de Portugal, pensou na hipótese de lhes sugerir esse destino. Eu aconselhei a Turquia…

Entretanto o Magnus regressará ao trabalho, aos estudos e ao pequeno apartamento que paga e que arranjou pelos 18 anos, a pedido dos pais, quando as três irmãs começaram a crescer e pareceu chegada a hora de ele se fazer à vida. Disse-me que mudara de opinião, durante esta viagem de 6 meses, quanto à bondade da entrada da Suécia na UE - agora é a favor e vai "difundir a boa nova" na sua terra.

Magnus e os pais do Magnus. Dou voltas à cabeça a tentar encontrar algo de comum entre a sua maneira de viver e educar e a nossa, a portuguesinha. Talvez um dia os encontre e seja a minha vez de perguntar esta e outras coisas.

3 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Já tinha saudades deste registo :-)

Silvia Chueire disse...

Gostei de ler este texto, Kamikaze. O amor cuidadoso pela sua terra, a generosidade com o jovem, o olhar para além das pequenas questões provincianas.
E last but not least o texto bem escrito.
Ah, é mesmo bom !

Um abraço,

Silvia

M.C.R. disse...

afinal não sou só eu a escrever textos longos.
Só que não bons como este.