05 setembro 2006

Estes dias que passam 35

Alguns equívocos com importância

1 Já não me lembro (e tenho preguiça de o ir confirmar em anteriores escritos meus, aqui neste blogue) se o caso Grass começou ou não antes de Agosto. Relembrando: Grass é um dos mais conhecidos e mais estimados escritores europeus. Foi galardoado com o Nobel entre dezenas senão centenas de prémios. A sua obra, relatando a dolorosa história da Alemanha, foi glosada em diferentes tons havendo mesmo quem o tenha erigido à condição de “consciência moral” do país, que bem necessitado andava nesses anos turvos de 50 a 80. Posteriormente Grass falaria também da perseguição aos alemães, aos civis alemães, derrotados e expulsos de terras onde viviam há séculos.
Grass, sabia-se, fora feito prisioneiro de guerra, pelos aliados, e passou mais de um ano num campo com outros milhares de jovens soldados vencidos. Agora sabe-se que, aos dezasseis anos, se oferecera como voluntário para os submarinos. Não tendo entrado na marinha, que de resto já quase não existia, foi incorporado numa unidade Waffen SS. Como milhares de outros miúdos! Pouquíssimos meses depois já estava vencido e preso. Nunca falou deste episódio, de resto conhecido, bastava ir ver a ficha militar dele, até ao momento de escrever a sua autobiografia. E foi o escândalo. Todos os filisteus que sempre detestaram a obra poderosa e extremamente rica de Grass vieram para a praça pública arrancar os cabelos e bater no peito acusando não o rapazola de 17 anos, educado no universo ideologicamente carcerário do nazismo, mas o escritor de mais de setenta anos. Que mentira! Que ocultara o passado sanguinário e nazi (passado com dezasseis anos de idade!!!) que isto e aquilo!
Tenho visto nesta procissão de súbitos conversos à virtude muito boa gente que, bem mais entrada em aninhos, educada em universos muitíssimo mais livres, entendeu a determinada altura da sua vida de adulto alinhar com outros ismos igualmente maus, igualmente perversos e reconhecidamente denunciados como tal. Por quem Deus nos manda avisar! Juízo, criaturas, juízo, uma pouca de vergonha na cara, que este forno (onde pretendem liquidar uma obra, uma reputação e um homem digno)) não está para bolos.

2. E já que se está com a mão na massa vamos a outro ataque de politicamente correcto: parece que um articulista (não interessa o nome) escreveu holocausto assim mesmo, com letra pequena. Ai Jesus, Maria, José que é o fim do mundo! Holocausto com letra pequena é duvidar da Shoa, do extermínio dos judeus (nunca se fala dos outros que por raça ((ciganos)), cor ((cidadãos alemães negros )) nacionalidade ((espanhóis, russos e outras raças inferiores)) encheram os campos e morreram exactamente da mesma maneira) dos fornos crematórios, de Auschwitz... É, numa palavra, revisionismo histórico. E isto terá dado direito a notas, doutas notas, de redacção no jornal onde o artigo fora publicado.
Ora, indo por partes: no dicionário Houaiss, não ha menção à famigerada maiúscula. Nem tem de haver. A palavra (que significa sacrifício de uma ou muitas vítimas pelo fogo) já contem em si própria o quantum satis de horror para valer em minúscula e, acaso, em escrita inteligente(?!) sem h. Fazer desta subtil minúscula um ataque anti-semita é, perdoarão, procurar pelos num ovo. Mais uma vez, juízo, criaturas, juízo!

3 E, já agora: a expressão revisionismo (que com histórico a seguir se aplica aos negacionistas do massacre) tem raízes nobres que convinha não abandalhar, não estragar, não usurpar. O espírito do senhor Bernstein, socialista e judeu, ficaria muito grato. E a malta que não dá para o peditório do “verdadeiro socialismo” versus torpe revisionismo, também agradece. Valeu?

4. No Iraque, segundo conspícuos meios oficiais norte-americanos, a contabilidade dos mortos ultrapassou a barreira dos cinquenta mil. Ora aqui está um argumento que o senhor Saddam Hussein faria bem em usar. De facto, cinquenta mil mortos, num pais democrático, com governo eleito, parlamento, exércitos ocupantes e milícias privadas de companhias estrangeiras igualmente ocupantes, parece um bocado exagerado. E num curto período de tempo. Saddam, uma vez mais, vê-se ultrapassado em eficácia anti-iraquiana, anti-civil. Vê-se mesmo que é arabe, burro, e inferior... E os mesmos meios oficiais, começam a deixar ouvir esta que seria espantosa se não fosse cínica e infame: o Iraque encaminha-se para uma guerra civil incontrolável. Ora toma, que já almoçaste!

5. Continuando o périplo pelos países ditos “muçulmanos”, temos que no Afeganistão, nem em Cabul as pessoas estão tranquilas. E no resto do território, nomeadamente no sul e no leste, a guerrilha domina, mata, morre e volta a matar e a morrer. As senhoras andam de burka à mesma e o governo de bons afegãos tutelado pelos ocidentais, não é obedecido por ninguém. Se neste momento, as tropas estrangeiras saíssem o dito governo não tinha tempo sequer para se assoar antes de se ver presa da guerrilha.

6. E no Líbano? Pois no Líbano as escassas tropas da ONU, a futura FINUL, vai desmontando cento e sessenta bombas de fragmentação por dia. Tendo em conta que ainda só patrulha dez por cento do sul, pode dizer-se sem receio de desmentido que terão trabalho para anos. Um aparte: as bombas de fragmentação fazem parte das armas internacionalmente proibidas contra populações civis. Detalhe pouco significativo aos olhos de Tel Aviv que considera o Líbano na sua totalidade como um viveiro de terroristas do Hezbollah...

7. No Darfur, tudo na mesma: morre-se de fome, de doença, de tiros, de tudo e, sobretudo, de falta de esperança.

8. E por falar em falta de esperança: Alguém consegue olhar de olhos secos e impávidos essa infindável caravana marítima de barcos carregados de emigrantes negros que todos os dias chegam às costas de Tenerife? Alguém consegue lembrar-se dos outros, dos que não chegam porque se afundaram nesses caminho semeado de emboscadas? Alguém explica porque é que esses homens, que não sabem nadar, se metem num “kaiuko” podre de velho, para imitar em tragédia a gesta duns portugueses malucos que iam demandar as costas do marfim do ouro e da aventura?
Alguém, entre nós, que fomos, ou tivemos na família, um ou mais emigrantes económicos, não entende este grito imenso e silencioso, de homens na flor da idade que se sujeitam a tudo, que arriscam tudo, para vir varrer as nossas ruas, apanhar fruta nos nossos campos, ser mão de obra barata, num continente que vê decrescer alarmantemente a sua população? Alguém é capaz de nos dizer o que move esta gente que, ao abandonar a aldeia, a pátria, a família, se arrisca a morrer afogada ou, no melhor dos casos, a ser detida logo à chegada a terras que poderiam ser de esperança mas não?
Para os que guardam no olhar uma lágrima e na praia uma garrafa de água para dar aos desgraçados que chegam, um abraço.
E para os outros, uma proposta: leiam na internet um texto de Javier Cercas.
À cautela irei tentar pô-lo no blog mas, conhecidas que são as minhas inépcias, aqui deixo o endereço:
(em www. El pais.es/articulo/portada/vengan/queden/vayan/20060827elpepspor_11/Tes/).


9 E finalmente: Ricardo Pais, velho amigo, de outros tempos, outras guerras e muito teatro, deu há pouco uma entrevista onde mete, jucundamente e com o meu aplauso, a pata na poça: em resumidas contas, R. Pais vem dizer alto e bom som que se é verdade que há algum, parco, mecenato privado, tem sido o Estado o motor e o principal pagador da cultura pública mesmo quando as fundações que para aí pululam (Gulbenkian à parte) se esmeram em apontar para os privados que as dirigem, chamem-se elas Serralves, Casa da Música ou outro nome menos sonante. É o pagode, com os seus impostos que paga o grosso da despesa, que pagou a quase totalidade do investimento inicial e que ainda por cima pagando o seu bilhete continua a fornecer o essencial do cacau com que operam esses mecenas. Olha Ricardo, não te futuro grande futuro, mano. Eles nunca se esquecem de quem lhes levanta a bainha da calça para se ver a meia branca...

Post-scriptum: descobri com a melancolia própria de quem anda para aqui a dar água sem caneco que já postei centenas de páginas. Provavelmente “pessoais”, isto é, pensadas por mim, feitas para quem quer conversar comigo, me lê (grato favor me faz). Se isto é ou não projecto que caiba neste blog, não sei. Gostaria de pensar que cabe aqui.

9 comentários:

M.C.R. disse...

Ainda a tinta deste texto não tinha metaforicamente secado quando leio no Le monde livres datado de 1 de Setembro mas só agora começado a ler um texto de Daniella Dahm sobre Grass. Não haveria mal não fosse dar-se o caso dela usar o termo filisteu tambem. É uma coincidencia amável mas aborrecida porque se trata de qualquer coisa escrita antes de mim. Só agora o li mas acho que devo dar esta explicação. O que vou debitando poderá (de certeza) não ser importante mas é meu e só meu sem padrinhos, pais ou empréstimos forçados.
De todo o modo vale a pena ler o texto que me parece bem feito ainda que um tanto ou quanto elaborado.

o sibilo da serpente disse...

Caro MCR:
Pela minha parte, os seus textos "pessoais" são uma mais-valia para o blog. É sempre um prazer lê-los e reter a sabedoria que encerram. Permira-me, contudo, uma sugestão de forma: os seus textos são sempre longos, porque abracam mais do que um tema. Por que não fazer vários postais mais pequenos?
Pedoe-me a sugestão e um abarço do carteiro.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Se os seus textos "pessoais" não cabem aqui o que é que caberia? Já disse abaixo que chega de tantas dúvidas metafísicas.
Todos nós, vamos escrevendo e fazendo este blog, com a marca d'água de cada um. Abraço

M.C.R. disse...

Ai meus queridos confrades.
Antes de mais um obrigado forte pelas boas palavras. Depois uma confissão pungente: eu tenho um modo de escrever horrível. Sento-me diante deste espantalho e juro que vou ser mais lacónico que um espartano mudo. E começo. Trabalho sem rede, sem notas, sem nada: tudo à mão... E as coisas vão e vêem no meu desgraçado cérebro como as cerejas. Estes dias 37 era para ser uma folhinha escorreita e pequena. À medida que escrevia, vinham mais palavras em tropel, irrequietas como galinhas num chão de milho. Eu não tenho emenda, é o que é. Nasci canhoto e morro canhotíssimo.
depois sou de uma preguiça sibarítica e infame. não corto, não revejo, ou revejo só com um olho meio fechado, e ala que se faz tarde. Mas prometo emendar-me. Fazer dieta. De comida e de palavras. que estou gordo como um hipopotamo e falador como um grilo no cio. Vamos lá a ver...
Um forte e grato abraço

pedrinha disse...

Na verdade eu gosto de ler os seus extensos lençóis de palavras que considero pessoalíssimos pois cada um de nós tem um modo próprio de escrever. Gostei das narrativas enviadas da Galiza, por exemplo.
Os espartilhos estão fora de moda.

o sibilo da serpente disse...

MCR: não sei se reparou, mas tive de diminuir o tamanho de letra do link que fez neste texto, porque a página tinha ficado desformatada. Ok?

Silvia Chueire disse...

MCR,

Faça-nos o favor de continuar com os seus posts pessoais. Este aliás está muito bom, "fecho" com ele. : )

Abraço,

Silvia

Kamikaze (L.P.) disse...

Sera que fui assim tao equivoca, MCR?????? Ou havera ali e acola algum excesso de susceptibilidade que obnubila o discernimento de quem le? Comentei o tema "paginas pesoais", hoje, neste meu post, once and for all I hope!

O meu olhar disse...

Os seus textos MCR são uma das grandes mais valias do Incursões e além disso marcam: pela verdade, pela densidade pelo humor.