Diner at Kami’s home
Eu sei, sei mesmo de ciência certa, que este texto deveria ter outro nome, como a Sílvia, amadora de jazz, decerto concordaria: “Diner at Lilly’s” para poder pôr em fundo o amável e genial “Lullu’s back in town”, para dar o tom íntimo, caloroso, gentil e “raffiné” do jantarinho que reuniu um grupo de viventes que se sentem bem juntos, num salão ali à Estrela, em vésperas de cinco de Outubro .
Dizer jantarinho é, no mínimo um solecismo, mas que querem, a mim dá-me para estes diminuitivos e obviamente detesto a palavra banquete (tanto também não, graças e louvores se dêem a quem de direito) e jantar assim, tout court não dá sequer uma pálida ideia deste encontro.
Claro que não vou descrever tim-tim por tim-tim a reunião mas, não resisto a provocar a inveja de alguns confrades bloguistas ou leitores (que só de me aturarem já têm meio caminho andado para o paraíso que quiserem) ao citar por atacado um salão acolhedor, com um snooker a um canto (e aqui as erínias justiceiras, caem em voo picado sobre a carne já mitigada pela dieta deste vosso criado, castigando-o pela inveja corrosiva que lhe escorre do dedinho escrevinhador) um gato persa, afidalgado e surpreendente carinhoso (repararam que eu disse persa e não iraniano mas que é verdade que os persas tem mau génio, maus fígados e unha malévola, ai disso não duvidem) umas garrafas de um “Mouchão” insolente que não se bebia antes deslizava misteriosamente para o palato dos apreciadores e uma dona de casa que merecia superlativamente que lhe dedicassem outra e melhor (se possível!!!) versão da já citada Lullu’s back in town.
Atrevo-me a desvendar mais um que outro aspecto desta ceia (ah estas palavras antigas e augustas que nos levam a um universo de sabores quase perdidos...) celebrada, soubemo-lo depois, pelo famoso Frei Delfim das Cinco Chagas, em dia de S Francisco, o de Assis, o verdadeiro, o “poverello” cujos discípulos mais atrevidos foram chamuscados (é um modo de dizer... benigno) pelas fogueiras da fé ortodoxa, à conta dos excessos espirituais e carnais a que se entregavam. Ficámos, os restantes e agnósticos convivas, sem saber se o citado DLM pertencia a uma dessas antiquíssimas e, com o tempo, veneráveis heresias, dado que anunciou logo à entrada que fora de jornada a Sintra, local pecaminoso por excelência, a um convento de clarissas. E Deus sabe o que as religiosas da antiquíssima ordem foram capazes de fazer na denúncia implacável dos erros da Cristandade. Ora se conjugarmos esta ida e o dia que despontou ainda estávamos todos na conversa tão pesado de recordações pouco agradáveis para um monárquico de bandeira e tudo, logo veremos que anda aqui mão perigosa e irónica.
A dona da casa, quando há pouco lhe renovei os meus agradecimentos e me desculpei da hora tardia em que abandonei a casa dela, perguntou-me suspeitosa: V vai falar no Mouchão? ( e ia nesta pergunta uma dorida aflição pois é bem sabido pelas leitoras que nos acompanham que não há pior publicidade a casa e adega particular que esta de lhe citar os tesouros escondidos). Falasse eu numa adega honrada mas de pouco brasão e ninguém se importaria, mas em começando por esse alentejano de boa cepa, Jesus, começa o borborinho e os telefonemas, - olha lá acho que vou a Lisboa, importas-te de dizer onde é que mora a Kami? Só para lhe dar uma palavrinha... E a gente a ver o impetrante já de boca aberta, possuído dessa sede imensa e ancestral que ocorre à menção de um vinho deste género: - Pois olha, pá, não queres ver que me esqueci... Mas falaste na Estrela... Na serra da Estrela, dizemos de cá com o conveniente ar de espanto, - olha se lá fores trazes-me um queijo? E por aí fora.
Portanto, jantar em sítio indeterminado, com gato persa, um snooker que desperta invejas dramáticas e um bacalhau espiritual que só tinha um defeito: era óptimo, demasiadamente óptimo para um cavalheiro do norte que anda em dieta forçada. Isto não se faz a um cristão! Também é verdade que o não sou. Se calhar é mesmo por isso, diria alguém que não nomeio, escarninhamente. Ai estes franciscanos.
O bacalhau, querida hospedeira tinha, como lhe disse, um segundo defeito. Eu, como V. saberá, sou um figueirense adoptivo mas convicto. Terra bacalhoeira por excelência, lá se ensinam alguns mandamentos gastronómicos entre os quais este. Reserve-se a bela posta alta e branca do bacalhau para pratos onde ela possa ser vista e admirada pelos jantarantes, que também se come com a vista. E as partes menos nobres do gadídeo poderão então ser preparadas com esses disfarces que vão desde os pasteis até ao bacalhau escondido em creme, sob creme ou com creme, para já não falar no bacalhau à Brás. Viu?
De todo o modo e sabendo de ciencia certa, que afazeres familiares me trazem a Lisboa várias vezes por ano, parece-me que ficaria bem a uma pessoa de sólido apetite e sempre disponível para ser convidado, terminar esta croniqueta que é, além de discreto agradecimento, mais um indiscreto cravanço para uma repetição, dizendo como os antigos
Lúculo jantou em casa de Lúculo.
ps: eventuais penetras: é favor absterem-se.
nota: eu bem que tentei substituir a Lullu por alguma lily jazzistica e boa de ouvir mas não me lembro de nenhuma música com uma Lily. Fica pois a Lullu que é excelente, tanto ou tão pouco que até Monk a tocou!
Dizer jantarinho é, no mínimo um solecismo, mas que querem, a mim dá-me para estes diminuitivos e obviamente detesto a palavra banquete (tanto também não, graças e louvores se dêem a quem de direito) e jantar assim, tout court não dá sequer uma pálida ideia deste encontro.
Claro que não vou descrever tim-tim por tim-tim a reunião mas, não resisto a provocar a inveja de alguns confrades bloguistas ou leitores (que só de me aturarem já têm meio caminho andado para o paraíso que quiserem) ao citar por atacado um salão acolhedor, com um snooker a um canto (e aqui as erínias justiceiras, caem em voo picado sobre a carne já mitigada pela dieta deste vosso criado, castigando-o pela inveja corrosiva que lhe escorre do dedinho escrevinhador) um gato persa, afidalgado e surpreendente carinhoso (repararam que eu disse persa e não iraniano mas que é verdade que os persas tem mau génio, maus fígados e unha malévola, ai disso não duvidem) umas garrafas de um “Mouchão” insolente que não se bebia antes deslizava misteriosamente para o palato dos apreciadores e uma dona de casa que merecia superlativamente que lhe dedicassem outra e melhor (se possível!!!) versão da já citada Lullu’s back in town.
Atrevo-me a desvendar mais um que outro aspecto desta ceia (ah estas palavras antigas e augustas que nos levam a um universo de sabores quase perdidos...) celebrada, soubemo-lo depois, pelo famoso Frei Delfim das Cinco Chagas, em dia de S Francisco, o de Assis, o verdadeiro, o “poverello” cujos discípulos mais atrevidos foram chamuscados (é um modo de dizer... benigno) pelas fogueiras da fé ortodoxa, à conta dos excessos espirituais e carnais a que se entregavam. Ficámos, os restantes e agnósticos convivas, sem saber se o citado DLM pertencia a uma dessas antiquíssimas e, com o tempo, veneráveis heresias, dado que anunciou logo à entrada que fora de jornada a Sintra, local pecaminoso por excelência, a um convento de clarissas. E Deus sabe o que as religiosas da antiquíssima ordem foram capazes de fazer na denúncia implacável dos erros da Cristandade. Ora se conjugarmos esta ida e o dia que despontou ainda estávamos todos na conversa tão pesado de recordações pouco agradáveis para um monárquico de bandeira e tudo, logo veremos que anda aqui mão perigosa e irónica.
A dona da casa, quando há pouco lhe renovei os meus agradecimentos e me desculpei da hora tardia em que abandonei a casa dela, perguntou-me suspeitosa: V vai falar no Mouchão? ( e ia nesta pergunta uma dorida aflição pois é bem sabido pelas leitoras que nos acompanham que não há pior publicidade a casa e adega particular que esta de lhe citar os tesouros escondidos). Falasse eu numa adega honrada mas de pouco brasão e ninguém se importaria, mas em começando por esse alentejano de boa cepa, Jesus, começa o borborinho e os telefonemas, - olha lá acho que vou a Lisboa, importas-te de dizer onde é que mora a Kami? Só para lhe dar uma palavrinha... E a gente a ver o impetrante já de boca aberta, possuído dessa sede imensa e ancestral que ocorre à menção de um vinho deste género: - Pois olha, pá, não queres ver que me esqueci... Mas falaste na Estrela... Na serra da Estrela, dizemos de cá com o conveniente ar de espanto, - olha se lá fores trazes-me um queijo? E por aí fora.
Portanto, jantar em sítio indeterminado, com gato persa, um snooker que desperta invejas dramáticas e um bacalhau espiritual que só tinha um defeito: era óptimo, demasiadamente óptimo para um cavalheiro do norte que anda em dieta forçada. Isto não se faz a um cristão! Também é verdade que o não sou. Se calhar é mesmo por isso, diria alguém que não nomeio, escarninhamente. Ai estes franciscanos.
O bacalhau, querida hospedeira tinha, como lhe disse, um segundo defeito. Eu, como V. saberá, sou um figueirense adoptivo mas convicto. Terra bacalhoeira por excelência, lá se ensinam alguns mandamentos gastronómicos entre os quais este. Reserve-se a bela posta alta e branca do bacalhau para pratos onde ela possa ser vista e admirada pelos jantarantes, que também se come com a vista. E as partes menos nobres do gadídeo poderão então ser preparadas com esses disfarces que vão desde os pasteis até ao bacalhau escondido em creme, sob creme ou com creme, para já não falar no bacalhau à Brás. Viu?
De todo o modo e sabendo de ciencia certa, que afazeres familiares me trazem a Lisboa várias vezes por ano, parece-me que ficaria bem a uma pessoa de sólido apetite e sempre disponível para ser convidado, terminar esta croniqueta que é, além de discreto agradecimento, mais um indiscreto cravanço para uma repetição, dizendo como os antigos
Lúculo jantou em casa de Lúculo.
ps: eventuais penetras: é favor absterem-se.
nota: eu bem que tentei substituir a Lullu por alguma lily jazzistica e boa de ouvir mas não me lembro de nenhuma música com uma Lily. Fica pois a Lullu que é excelente, tanto ou tão pouco que até Monk a tocou!
8 comentários:
O título “Dinner at Lilly’s” fez-me lembrar o famoso filme “Breakfast-at-Tiffany’s, com a fabulosa Audrey Hepburn e a fantástica música de Henry Mancini.
Jantar sob os auspícios de São Francisco, poderia ser o título do artigo se o seu autor não fosse um ente tão… impenitente!
Realmente, a nossa Kami sabe receber e gosta de estar com os seus.
Resta-me poder retribuir e, nesse gesto, englobar aqueles que vivem, não no Marão, mas lá perto…não se me entendem..e é preciso aproveitar os humores quando estão de feição… O problema é que tenho de arranjar uma mesa muito maior do que aquela que tenho, aliás já velhinha, com algum caruncho sei lá…
O jantar em causa teve lugar no dia de São Francisco e fiz notar aos convivas que o Santo da fraternidade ali nos tinha reunido, que a vida é breve e nela não deveria haver lugar para tonterias…
Pois é verdade, naquele dia fui visitar as Irmãs Clarissas a Sintra, à tarde, pois que festejavam o dia dedicado São Francisco.
Como tinha jantar especial ali para as bandas da Lapa, não pude cair no pecado da gula (sabem como são os doces conventuais…)…
Em tempo: À Sílvia, tive o privilégio de a conhecer pessoalmente. Excelente pessoa! Constatarão aí no Porto!
Exactamente: convem nao esquecer que foi em honra da Silvia que foi o glosado encontro/repasto organizado! E bem que ela merece este e muitos outros mimos, nao so pelos excelente poemas com que nos brinda, mas por ser, para alem de inteligente, uma excelente pessoa e uma companhia calorosa e divertida! Um uraaaA a Silvia!
PS
MCR, que tal Lily Marleen?
Brindo a sua cronica, com M&C, tao do agrado da homenageada :)
Hum. O MCR, como sempre, descreveu muito bem este "pacto com M&C". Abraços
A crônica do jantar está muito boa, MCR. Não é uma surpresa que o esteja, vc sabe como gosto das suas crônicas.
Eu gostaria de acrescentar que a inteligência, a amabilidade, o carinho das pessoas presentes elevou um jantar fantástico à categoria de um encontro entre amigos, para mim inesquecível, por todas as razões. Nestas ocasiões o excelente vinho ganha brilho. Quanto à dona da casa, sei que é pouco, mas é emocionada que o digo: obrigada !
de facto o título é uma homenagem à Hepburn e ao realizador do filme, o tantas vezes esquecido Blake Edwards. É também um abraço-homenagem aos meus amigos Luisa e João Felix que da Tiffany's para gente normal trouxeram um anelzinho à Crazy Grazy, para me "pagarem o texto "sob o céu de nova Iorque: um lenço, um pássaro?" Nunca um autor teve prenda tão régia...
Teria com gosto citado a Lily Marlene, muito do meu agrado, desde que cantada pela Dietrich, mas eu queria pôr uma coisa menos triste e mais jazzy: para condizer com a noite que se passou chez Kami.
Com este relato do MCR a água até já me sai pela boca fora...
JCP: O que me espantaria era se fosse vinho. E "Mouchão"...
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