22 outubro 2006

Tudo a bombordo 3

Ter dezoito anos num país cinzento

Julgo que era Nizan quem dizia que os vinte anos eram uma idade amaldiçoada. Quando agora recordo os meus dezoito (enfim o período que vai do sexto ano do liceu até à faculdade) esses anos de primeira formação, sinto um misto de nostalgia e de verdade nizaniana. Também eu não permitirei que digam que era a melhor idade da vida. De facto, não era lá muito fácil ter esta idade num país que parecia adormecido, pelo menos sonolento e, sobretudo, se revelava demasiadamente conservador. E quando falo em conservador não estou exactamente a falar de política, fique claro.
Falo do resto, ou seja de quase tudo. Perguntar-se-á porquê e responderei de novo com Nizan: “saber o que iremos ser, é viver como os mortos”. E esse era o melhor futuro possível que nos esperava. Intolerável para quem lia desesperadamente Rilke e Pessoa (dois deslumbramentos), os primeiros neo-realistas italianos (Pavese, Pratolini, Vitorini, Silone) e os portugueses seus epígonos ou outros mais originais (e nunca esquecerei o admirável Anjo Ancorado de Cardoso Pires ou um Ruben A. lido em Santarém). Mas esses anos correspondentes grosso modo ao antigo terceiro ciclo dos liceus trouxeram-me também muitos e bons estrangeiros. A começar pelos romancistas alemães que falavam da guerra (Remarque, HH Kirst) dos franceses (entre todos uma paixão fulminante: Vaillant) sobretudo os autores de longos ciclos, Romain Rolland, claro. E os americanos: Faulkner, Heminguay, Dos Passos, Caldwell, Steinbeck.
Fiquemo-nos por aqui porque a lista é bem maior e de certeza estou a esquecer algum grande autor lido nestes anos. Todavia, já aqui se pode começar a identificar algo, que na altura eu não identificava mas que claramente apontava para uma literatura relativamente comprometida, politica e socialmente. Não era um esforço deliberado, meu ou dos que me rodeavam: era o que havia, o que se vendia, o que se lia. Contudo se lhe adicionarmos a tempestade Humberto Delgado, e a revisitação da experiencia africana via autores anti-racistas (Richard Wright) pode eventualmente perceber-se que a construção da minha visão do mundo seguia um rumo que cedo ou tarde me obrigaria a olhar as coisas como um todo e a fazer escolhas bem mais profundas.
Fui sempre um grande leitor de poesia. E também por aí fosse via Prevert (Paroles) ou pelos poetas portugueses que iam publicando também me parece, hoje, indesmentível um princípio de percurso em direcção à liberdade. E ela vinha, não no “Sud Express”, como nos tempos de Eça, outra paixão absoluta que só tem aumentado com o tempo, mas nos filmes que víamos, no rock and roll que ouvíamos, numa pungente, escandalosa, percepção que aquele mundo (dos livros, dos filmes, da música) nos estava vedado. E aí sim, foi aí, nessa atracção pelo estrangeiro que se começaram a moldar muitas preferências. Antes de ser de esquerda fui de certeza, cosmopolita. O que me também terá salvo de tentações demasiado autoritárias. Não é por acaso que uma das acusações desde sempre feitas aos heterodoxos marxistas e aos acusados nos processos de Moscovo e arredores, foi a de “cosmopolitismo”. Ou seja o proclamado “internacionalismo proletário” era, desde sempre (e mesmo a meus olhos pouco depois de entrar na universidade), de bitola estreita, demasiado estreita. Proletário e stalinista.
Foi assim que entrei para a universidade. A cabeça cheia de literatura, uma indignação que ainda não conhecia o alvo, que entrava perfeitamente no poema de Régio, outro autor, claro, “Cântico negro”. Eu também não sabia para onde mas sabia por onde não queria ir.
A universidade de per si era já a possibilidade de encontrar gente com os mesmos gostos, o que era bastante. Mas era também a sensação de liberdade. Finalmente longe da família que por cá tinha, longe dos internatos de onde se fugia à noite, sem motivo, só por fugir, porque o internato era uma prisão, os prefeitos uns esbirros e porque era obviamente proibido. Cheguei à Coimbra de lavados ares numa época de enorme efervescência. A esquerda ganhara as eleições paera a Associação Académica (direcção Candal) depois de onze anos de hegemonia da direita e a direita coimbrã era das puras e duras, fascistóide, católica, apostólica e ultramontana, com forte componente monárquica legitimista e agravada pela súbita derrota. Atrás dela havia a tradição do integralismo lusitano, dos lentes que todo lo mandam, de Salazar, enfim. Pior: aquela direita era provincial, provinciana e copofónica. E as praxes académicas de que a direita era a principal defensora eram violentas, quase bestiais. Em suma, a direita coimbrã em 1960 mais parecia uma fábrica de fazer esquerdistas do que qualquer outra coisa. As assembleias magnas, uma outra revelação!, eram duras, duravam horas, mobilizavam fortemente um caloiro como eu que pela primeira vez na minha vida ouvia, entre maravilhado e comovido, gente a defender as mesmas coisas que defendia, a dar-lhes todavia outra espessura, outro rigor, um discurso mais abrangente e vigoroso. Picasso terá dito que foi para o partido comunista como quem vai para a nascente. Eu fui para a esquerda como quem vai respirar. Antes mesmo de o perceber, já estava metido num processo de destituição do delegado de curso, claramente acusado de estar feito com a direita e com a PIDE. Não era verdadeira obviamente esta última conotação mas também não era mentira o militantismo político do pobre diabo. Ter-me-ei estreado na assembleia de curso que o destituiu e entregou o cargo a Parcídio Sumavielle. Terá sido por isso que rapidamente fui cooptado por um grupo onde, agora o sei, já se sentia a influência das células comunistas universitárias. Todavia, falávamos mais de literatura e de cinema que de política. E a propósito, ocorre-me uma anedota ilustrativa: nos círculos associativos e políticos corria uma lista de “livros essenciais” para um “progressista”. Recordo poucos, muito poucos mas entre eles havia “Le Marxisme” de Lefebvre que ainda hoje se pode ler sem pesar, ou um par de textos de Lukacks, outro autor eminente legível. Claro que não faltavam textos de Engels (“a origem da família...) de Marx (o Manifesto, a Critica do Programa de Gotha, e mais uns quantos) um temível e indigesto Lenine (Materialismo e Empiro-criticismo, uf!, que estafa!) alguns romances e alguns livros de história de que só recordo “A revolução francesa” de Albert Soboul. A parte mais curiosa é que alguns dos livros da lista, aliás a grande maioria, eram quase impossíveis de encontrar e muito menos de comprar... E foi por isso que me estreei como cliente da “livraria luso-espanhola” que importava livros proibidos da America Latina, nomeadamente do México e da Argentina onde existiam editoras que publicavam alguns dos livros da lista, comprei, e ainda tenho, a prestações, um desses livros: “El materialismo histórico” de um certo Konstantinov. Desse livro que vegeta por aqui numa estante de monos já nada sei mas foi graças a ele que me tornei assíduo de Neruda, vendido em edições baratas da Losada, na mesma livraria. Acho que os primeiros livros que li em espanhol foram do Neruda e do Lorca. Atrás deles veio uma legião de autores italianos Quasimodo, Pavese, Sabba ou Ungaretti. O catalão foi-me apresentado por Espriu e o galego por Celso Emílio Ferreiro.
Esta insistência na leitura deverá ser entendida: num pais onde a acção política estava proscrita ou era residual para não dizer clandestina, a esquerda existiuu em dois pontos que não se tocavam, a fábrica e a universidade. Falo da segunda, obviamente sem sentimento de culpa ou complexo de inferioridade. E por uma razão bem clara a que já Gramsci fazia referência. Podemos não ter uma origem de classe proletária, não ter uma situação de classe proletária mas podemos ter uma posição de classe que não requer nenhuma das anteriores. De resto que se saiba nem Marx, nem Lenine nem Bakunine ou Kropotkine eram operários, filhos de operários sequer próximos. Pela (escassa) liberdade intelectual, pela aglomeração de estudantes vindos de toda a parte, pela vida associativa e criativa a que dava lugar, Coimbra, cidade de estudantes longe da família, era apesar da sua pequenez como cidade e de estar longe dos dois únicos pólos urbanos, industriais e decisórios, um local privilegiado. Menos espectacular que Lisboa mas propiciando uma melhor integração de que a associação académica era um exemplo: de facto o fenómeno associativo era o centro da vida cultural, desportiva e social coimbrã. Mobilizava centenas de estudantes, podendo mesmo dizer-se que era a única associação estudantil realmente representativa. Não criaria elites tão radicais (como posteriormente se viu) mas também não as tornava tão vulneráveis à repressão, política, policial e familiar. E isto era muito, se calhar, quase tudo.

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