27 novembro 2006

Estes dias que passam (Cesariny)

Livre, poeta e amado
Não sei se os anos vindouros darão razão a este texto que, de resto, não aspira a glória eterna mas tão só pretende lembrar um poeta que iluminou os últimos sessenta anos.
Cesariny acaba de morrer cumulado de honrarias o que não deixa de ser irónico num surrealista mesmo português. Provavelmente os seus recentes admiradores terão entendido que oitenta e tal anos de vida excessiva mereciam os louros e a admiração da pátria agradecida.
Poder-se-á pensar que vai nisto uma crítica ao poeta (e talvez vá) mas de facto as homenagens tardias não apagam o uivo surrealista (se surrealista o que ainda está para averiguar) que ecoou naqueles tristíssimos anos quarenta.
E isso, esse estrondo, esse escândalo (e o regime de então bem que o compreendeu) influenciou muito mais do que eventualmente se regista por aí. Cesariny acaba por aparecer muito isolado mesmo se o associamos sempre ao restante grupo dos surrealistas (e não grupo surrealista que me parece nunca ter de facto existido a menos que a sua cisão prove isso mesmo).
Pessoalmente, se isso serve para alguma coisa, foi a leitura dos surrealistas, nos primeiros anos de sessenta, que me marcou a fronteira da juventude para a idade adulta. Creio que o mesmo se passou com muitos da minha geração que se tornaram sensíveis à trilogia amor liberdade poesia.
Mais: a lição poética de geração que Cesariny encabeçou mesmo que ele não se reconheça nesse papel de leader teve um forte prolongamento político na medida em que à esquerda, na esquerda e pela esquerda, provou que era possível uma resistência clara e irredutível ao regime autoritário e fascizante da época. O surrealismo, ou aquilo que entre nós se chamou surrealismo, libertou-me (libertou-nos) da obediência ao realismo socialista e ao cânone demasiado estreito que artisticamente propunha. E não deixa de ser curioso que ao contrario do que se esperaria a antologia “surrealismo/abjeccionismo” (1963) englobe alguns nomes do neo-realismo (Joaquim Namorado e Luís Veiga Leitão entre outros).
Morre Cesariny como anteontem morria a Anita O’ Day. O mundo fica um pouco mais pequeno mesmo se outros poetas e outras cantoras entretanto nascem. Morre um mundo que eu conhecia e não me consola o facto de haver outro que nasça certamente. Mesmo que esse mundo que desaparece fosse aquele do “pais no país onde os homens são só até ao joelho”. Cesariny escrevia isto e conseguia o milagre de ser homem da cabeça até aos pés. E isso que parece nada foi, nesses anos de formação, tudo.

26.11.06

2 comentários:

Silvia Chueire disse...

Mal tenho tido tempo de entrar na net ler e notícias daí, nem tenho vindo aqui colaborar e ler os companheiros. Perdoem-me. Entro agora e me surpreendo com a notícia. Estes dois últimos anos têm sido de perdas importantes para a poesia portuguesa. Sinto.
E espero francamente que haja poetas à altura destes que se vão.

Meu abraço grande, saudoso e pesaroso,

Silvia

ferreira disse...

Excelente, como é habitual, MCR. Aproveito para informar a quem interessar que
no próximo dia 01DEZ,sexta-feira, pelas 15H00, no auditório da Biblioteca de Santa Maria da Feira irá ocorrer o simpósio « Qual é o Deus do Mediterrâneo?» A moderação fica a cargo de Carlos Magno, e entre os conferencistas, conta-se com SALMAN RUSHDIE