19 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 42

Progressos demasiadamente lentos
Não sei porquê mas lembrei-me subitamente do título (algum livro, algum filme?) deste folhetim. Tenho quase a certeza que deveria ser algo de Jean Paulhan, coisa muito anos setenta, belos anos os do segundo quinquénio, não pelo 25 A, caro José, mas também por causa disso. De setenta e seis a oitenta, este seu amigo e devedor, comandava uma nau com quase setecentos tripulantes e trezentos ou quatrocentos mil utentes, entre beneficiários directos, familiares destes e patrões. Tratou-se de uma aventura exaltante, abençoada pelo facto de se tratar de um serviço essencial a uma grande camada de população não muito favorecida. Acho que dei o meu melhor e que consegui deixar para quem depois de mim veio, uma casa mais arrumada e mais fácil do que a que recebi. Ainda hoje vou encontrando gente que trabalhou comigo e, honro-me de o dizer, que terá gostado de trabalhar comigo. Cada um destes encontros é uma pequena festa de que saio contente e de lágrima no olho. Muitas lágrimas no dito cujo órgão da visão, que eu, com a idade, comovo-me facilmente. Aliás, pensando melhor, sempre fui de fácil comoção e fácil indignação. O que é bom porquanto significa que não sou de arcas encouradas nem de rancores escondidos. Digo o que penso sempre sem rede e a isso devo muitos amargos de boca. Mas, também por isso, tenho uma boa carteira de amigos. E os amigos, caro leitor, são o sal da terra. E entre eles estão, seguramente, muitos dos meus antigos subordinados desses anos setenta. Há mesmo um pequeno grupo, um “inner circle” que governa o meu dia de anos. Nesse dia, e isto desde há trinta anos, o meu programa está marcado por eles. Almoçamos juntos, claro, oferecem-me um queijo da Serra, sempre óptimo, recordam-me histórias e prometemos sempre voltar a encontrarmo-nos antes de um ano. E como sempre isso não acontece. Este ano o almoço foi adiado por motivo de força maior, uma das minhas antigas secretárias, a mais velha por sinal, vai ser operada e entendemos guardar o encontro para depois da operação. Para ela poder comer o que quiser, e tão gulosa que é, valha-lhe Deus, para poder beber um licor especial (à falta de uma zurrapa que ela adorava e que dava por “Magos” uma espécie de jeropiga falsificada e com muitas bolhinhas) e para poder bater-me carinhosamente na mão (ficamos sempre ao lado um do outro) dizendo-me que não tenho emenda. Antes que alguma leitora mais buliçosa pense mal, deverei dizer que a minha amiga Adelaide Arbiol me leva um largo par de anos de vantagem. Quantos não sei, a uma senhora não se pergunta a idade, mas ela terá conhecido a minha avó Dora Heinzelmann ou pelo menos terá ouvido contar várias histórias amáveis dessa (também) grande senhora.
Esta dona Adelaide Arbiol era a rainha das secretárias, um poço de informações, de bom senso e de ternura. E tirante o secretariado, que já lá vai, continua a ser um carácter!
Os leitores já me conhecem: eu navego nestas vagas prosas, um tanto ou quanto à bolina, pouca bússola, pouco leme, ao sabor de uma onda mansa ou de uma brisa mais carregada. Acreditam que eu ia, como o título poderia indicar, falar dos meus progressos na luta contra o peso? Pois era por aí que queria ir. Para contar que os primeiros dez quilos já foram dar uma volta ao bilhar grande, esperando que não voltem mesmo que me arreceie do Natal que por aí vem, do inverno que vai entrando com pezinhos de lã, de uma súbita e enternecida vontade de comer um verdadeiro cozido à portuguesa “mcr Art” como se diz nas germânias e não como um de “arrebimb’o malho” proposto no blog “gosto-comer” e da autoria indiscutível do João Vasconcelos Costa. Quem quiser ir por ele, vá que não perde tempo embora se arrisque a ganhar peso. E água na boca! Como é que um eminente cientista e professor universitário pode ser assim tão bom gastrónomo? Os cientistas deviam ter um apetite de passarinho, sempre enfronhados na sua difícil arte, comendo distraídos e a desoras uma sanduíche e o respectivo guardanapo de papel, bebendo-lhe força de cafés ou chá verdadeiro, que também é excitante. Parece que não: que há por aí uns cavalheiros que parafraseando o rifão espanhol (a dios orando y con el mazo dando) com uma mão manipulam a proveta e com a outra a colher de pau. E o João é um desses. Aliás suspeito que terá mais mãos, que o homem é um bom leitor, um excelente conversador, um comentarista de gabarito e mais um par de coisas que demonstram sem dificuldade que, mesmo nesta terra abandonada que Cristo nunca pisou, há gente de cultura e de ciência a que juntam bom gosto e humor.
Mas eu queria falar desta pequena aventura de perder peso que, surpreendentemente, está a custar muito menos do que eu temia. O meu objectivo já foi atingido em cerca de 65% mas não é tempo de grandes comemorações: os restantes 35 vão ser os mais difíceis. É que quando pensamos que a guerra está ganha, baixamos a guarda e zás! Damos com os burrinhos na água. O excesso de confiança, o conselho amigo e fatal: come mais um bocado que não é isso que te vai engordar! Ora é precisamente “isso”, essas duas colheradas pecadoras, que vai engordar ou deitar abaixo o esforço de um par de dias.
Por outras palavras: quem faz dieta sofre não só os efeitos da privação mas também a enganadora solicitude dos amigos e familiares.
Começo a perceber melhor, antes tarde do que nunca, aquelas histórias piedosas de anacoretas orando no deserto e sendo alvo de tentações temíveis desde a comida até às virgens que o Demo prazenteiramente lhes oferecia para acicatar as carnes martirizadas pelo simum e pelos frios da noite solitária. E se é verdade que a história só nos relata os casos de vitória da virtude, não consigo deixar de pensar que também terá havido umas pequenas quebras ao jejum dos sentidos do santos homens. Pelo menos, para mim que, com o avançar dos anos, me tornei mais tolerante, essa ocasional quebra dos rígidos princípios, torna-os mais humanos, mais próximos e, vejam bem, mais exemplares!
Todavia esta minha recorrente simpatia pelos pecados veniais não significa tréguas natalícias ao meu regime. É que o meu peso era de facto demasiado e começava a fazer-se sentir. E já que as coisas vão correndo sem especiais dramas ou dificuldades, o melhor é manter o esforço e as cautelas. E mesmo quando penso que este propósito é mais uma afloração do politicamente correcto, coisa que me desagrada mais do que seria natural, terei que o manter até expulsar os derradeiros 5 ou 6 quilos que ainda resistem.
Volta e meia, estou a escrever um texto, lembro-me de um poema, de um livro e, pimba!, largo texto, computador e aí vou eu. Comecei a falar de cozido e nem pensei. Levantei-me num salto, enverguei o primeiro sobretudo à mão e ala que se faz tarde. Fui pelos precisos do cozido com um desembaraço que seria comovente se não fosse um desafio ao demo. Faço o cozido e faço-lhe as devidas honras que um dia não são dias. E abre-se uma garrafa de uma reserva de Porca de Murça para ajudar à digestão. O cozido, leitoras desassossegadas, estava mais que bom, o vinho idem, aspas, aspas. E eu comi bem mas muito menos do que nos tempos em que pecava fartamente por mor de uma gula ancestral e moscovita. Desta vez se não fui temperante também não fui guloso. Dei ao dente mas consegui conter este mano a mano com o cozido dentro dos limites.
Agora que já acabei o meu desvio habitual ( a que um leitor amável chamou “estilo inimitável”) volto ao título da crónica: progressos em tudo demasiado lentos. Mas progressos. Desta feita é o computador ou melhor os endereços do meu mail. Descobri estupefacto que na minha lista constava gente que eu não conhecia, gente conhecida a que nunca escrevo e gente demasiado conhecida a que jamais escreveria. Surpreendido com esta invasão, perguntei aos meus botões se não poderia apagar as direcções espúrias. Os botões, sempre animosos, disseram-me que sim. E aí vai disto, tentei briosamente eliminar as direcções invasoras. Foi a meia hora de rodeo mais empolgante da minha vida. Fiz tudo e alguma coisa mais mas os parasitas tinham mais persistência do que a antigas ténias. Não saíam nem à viva força. Ao fim de meia hora de combate vão e inglório rendi-me à evidencia. Tinha de tentar abrir o sítio do mail para ver se algum conselho haveria para a tarefa purificadora. Havia claro e era mesmo fácil para o matumbo que estas vai dedilhando. Não tenho sequer a certeza de ter dado com o remédio mais fácil mas a verdade é que expulsei os invasores para os cornos da lua, senão mesmo para cu de Judas.
E com esta me vou. Contente com estes pequenos passos que aumentam o meu debilitado ego e a vaga auto-estima que me vai mantendo de pé. Lentamente. Mas em pé.

Nota: “progrès en amour assez lents, 1966. Tchou ed., Paris 1968 ou Gallimard 1982 (com “le guerrier appliqué e Lalie) de Jean Paulhan, collection L’imaginaire.

4 comentários:

JVC disse...

Einstein tocava violino. Como não me posso comparar nem tenho bom ouvido, limito-me a tocar tachos e colheres.

josé disse...

E que bem que toca, pelo que me foi dado ler.

Toca nos tachos e toca nas teclas a descrever os toques.
Para mim, foi descoberta, ler os modos de abifar lombos e vazias com os temperos salteados por considerações pessoais acerca das modulações nos tratos de polé a afinfar-lhes.
No que toca ao arroz, também apreciei os toques sobre o risotto que julgava ser música que se ouve apenas em Itália.
De resto, reclamo a primícia de ter noticiado em primeira mão, ao aqui postador, a existência do blog sobre os comeres cultivados.

Sousa Pereira disse...

Esta é a minha primeira entrada em comentários e já ficarei muito contente se o conseguir, independetemente do conteúdo...

M.C.R. disse...

O leitor José foi de facto o responsável por eu ter redescoberto o João, velho, velhíssimo amigo e companheiro de outras antiquíssimas guerras. Lembro-me agora que foi num jantar em honra da Silvia que o José me falou deste blog e que logo a seguir eu (ou o JVC) comunicámos via mail. Felicíssimo reencontro, como se vê. Eu ia dizer que les beaux esprits se rencontrent mas apenas com a limitação de só citar os dois comparsas: o leitor arguto ( e blogger de boa pinta) e o JVC (blogger também e mestre cuca de estalo). Isto da blooesfera tem ás vezes piada. Agora esperemos que o nóvel recem-chegado Sousa Pereira diga de uma vez por todas o que tem a dizer