Não fora um texto de Nuno Crato na “revista” do Expresso nunca teria sabido da morte de Alfredo Pereira Gomes, um nome que aprendi a respeitar em casa de Alcinda e Jorge Delgado. E mesmo que o professor doutor Crato lhe tenha prestado uma expressiva homenagem não posso também eu de aqui nesta pequeno canto vir juntar a minha voz. Não tenho qualquer espécie de competência para falar das eminentes qualidades de professor e de investigador de APG. O que sei dele a esse respeito foi-me transmitido por Jorge Delgado que foi seu amigo e colega nesse espectacular núcleo de cientistas criado no Porto à sombra de Ruy Luis Gomes.
Conhecio-o mais tarde e conservo dele a imagem de um homem sensível e discreto, bom conversador e, curiosamente, sem acrimónia pelo que tinha passado. Quando às vezes se discute (cada vez menos!) Portugal e o seu lugar no concerto das nações civilizadas, lembro-me desse esbanjamento de talentos de que o regime de Salazar foi responsável. Como é que se faz tábua rasa de um núcleo tão extraordinário de professores que foram (como também no caso da vizinha Espanha aconteceu...) enriquecer outros países mais hospitaleiros? O Professor Pereira Gomes foi criar escola no Brasil e mais tarde engrossar as fileiras da universidade francesa. Foram décadas de ensino perdido para Portugal, foram gerações de alunos que não tiveram um professor que os estimulasse que lhes servisse de exemplo ou de guia.
O segundo morto a que me queria referia chama-se Joseph Ki Zerbo. A história de África seria diferente sem ele que foi quase um pioneiro nesses estudos. Fez parte dessa constelação de intelectuais negros de cultura francesa e terá sido um dos primeiros africanos a entrar na Sorbonne como professor. Deixa uma obra notabilíssima e um exemplo de luta pela democracia e pela liberdade que prolongou até quase os seus últimos dias.
Corre por aí ( Europa América) uma “História de África” da sua autoria. Está obviamente datada como não podia deixar de ser. Mas continua a ser uma referencia absoluta. Eu deixaria aqui ficar mais dois ou três títulos mas tenho a firme convicção que, depois deste livro lido, o leitor partirá à descoberta de outros e não quero (oh espírito natalício!...) privá-lo dessa aventura. De resto foi assim (ou melhor: foi de um modo semelhante) que comecei a esgaravatar a história e as culturas do continente negro. O meu guia foi outro, bem diferente, “Afrique ambigue” (de George Balandier) e confesso, tantos anos passados, que ainda hoje me comovo à lembrança de tantos e tão excelentes autores que fui encontrando ao sabor de uma errância de leitor curioso e desenfastiado. A verdade é que só assim concebo estas “lectures savantes” que não desdenham alguns excelentes portugueses. De bom grado aconselharia alguma literatura histórica q. b., hagiográfica sem sombra de dúvidas mas com o perfume da sinceridade. E meto nesse grupo Ayres de Ornellas ou António Enes arautos do “império” bem como alguns relatos de campanhas (“Os Dembos” de Henrique Galvão, ou o conjunto de “cadernos coloniais” editados pela “Cosmos” nos idos de quarenta) que deitam por terra, sem o querer, a teses dos quinhentos anos de presença activa, forte e constante que agora por aí se vende. O império até finais de oitocentos, princípios de novecentos, quase não passava de um arranhar da costa de África, aqui e ali sarapintado por viagens de pombeiros, de comerciantes afoitos mas já cafrealizados, de um que outro explorador, tudo feito sem regra, sem plano sem uma política clara da metrópole. Para não ir mais longe: leia-se com olhos de ler “O fim do império vátua e Mousinho de Albuquerque” de Julião Quintinha e A Toscano.
Mas tudo isto vinha, vem, à boleia da morte de Ki-Zerbo. Esperemos que lá no seu longínquo e quase desconhecido país (Burkina Faso) lhe honrem a memória e, doravante, lhe consultem o espírito que se foi juntar aos dos antepassados. E que derramem junto da sepultura o vinho de palma necessário para que a viagem no país dos mortos seja fácil.
Et le troisiéme larron de cette histoire est... um turco. Um turco amador de jazz e de rhythm ‘n’ blues? Um turco a quem os Rolling Stones devem muito? Um turco, sim senhor. Um turco como há milhares seguramente, culto, entusiasta de alguma da melhor música popular do século XX: Ahmet Ertegun, o mítico dono e fundador da Atlantic Records. Andam por algumas estantes daqui de casa belos discos com esse fabuloso selo. Coltrane, Ornette Coleman, Mingus algum MJQ, se não estou em erro, pelo jazz, Crosby, Stills Nash and Young ou Led Zeppelin pelo rock para não falar de tantíssimos heróis do rhythm and blues.
Corre por aí com demasiada insistência a tese tonta que basta saber tocar, ter uma boa canção ou um especial sentido do ritmo. Nada mais falso. É preciso sempre um editor, um cavalheiro que arrisque, que empurre, que dê ideias. E nisso Ertegun era pródigo. Gostava de música, gostava da música negra americana, tocava bastante bem, era autor de canções (algumas deles convertidas em hits) sob o nome de Nugetre, e divertia-se como um cabinda com a música dos seus autores. Morreu, como diz um jornal “com as botas calçadas”: de facto deu uma queda no concerto dos seus amigos Rolling Stones em finais de Outubro. Sobreveio-lhe uma lesão cerebral e morreu ontem. Aos 83 anos ainda dirigia a Atlantic mesmo que esta companhia pertença agora ao universo Warner Brs. Bem avisados, os compradores mantiveram-no à frente da empresa. E ganharam bom dinheiro com essa decisão, claro. Ertegun um grande senhor da música popular. Suponho que o meu amigo e leitor José partilha comigo este momento de luto. E de alegria pela excelente música que nos legou.
Conhecio-o mais tarde e conservo dele a imagem de um homem sensível e discreto, bom conversador e, curiosamente, sem acrimónia pelo que tinha passado. Quando às vezes se discute (cada vez menos!) Portugal e o seu lugar no concerto das nações civilizadas, lembro-me desse esbanjamento de talentos de que o regime de Salazar foi responsável. Como é que se faz tábua rasa de um núcleo tão extraordinário de professores que foram (como também no caso da vizinha Espanha aconteceu...) enriquecer outros países mais hospitaleiros? O Professor Pereira Gomes foi criar escola no Brasil e mais tarde engrossar as fileiras da universidade francesa. Foram décadas de ensino perdido para Portugal, foram gerações de alunos que não tiveram um professor que os estimulasse que lhes servisse de exemplo ou de guia.
O segundo morto a que me queria referia chama-se Joseph Ki Zerbo. A história de África seria diferente sem ele que foi quase um pioneiro nesses estudos. Fez parte dessa constelação de intelectuais negros de cultura francesa e terá sido um dos primeiros africanos a entrar na Sorbonne como professor. Deixa uma obra notabilíssima e um exemplo de luta pela democracia e pela liberdade que prolongou até quase os seus últimos dias.
Corre por aí ( Europa América) uma “História de África” da sua autoria. Está obviamente datada como não podia deixar de ser. Mas continua a ser uma referencia absoluta. Eu deixaria aqui ficar mais dois ou três títulos mas tenho a firme convicção que, depois deste livro lido, o leitor partirá à descoberta de outros e não quero (oh espírito natalício!...) privá-lo dessa aventura. De resto foi assim (ou melhor: foi de um modo semelhante) que comecei a esgaravatar a história e as culturas do continente negro. O meu guia foi outro, bem diferente, “Afrique ambigue” (de George Balandier) e confesso, tantos anos passados, que ainda hoje me comovo à lembrança de tantos e tão excelentes autores que fui encontrando ao sabor de uma errância de leitor curioso e desenfastiado. A verdade é que só assim concebo estas “lectures savantes” que não desdenham alguns excelentes portugueses. De bom grado aconselharia alguma literatura histórica q. b., hagiográfica sem sombra de dúvidas mas com o perfume da sinceridade. E meto nesse grupo Ayres de Ornellas ou António Enes arautos do “império” bem como alguns relatos de campanhas (“Os Dembos” de Henrique Galvão, ou o conjunto de “cadernos coloniais” editados pela “Cosmos” nos idos de quarenta) que deitam por terra, sem o querer, a teses dos quinhentos anos de presença activa, forte e constante que agora por aí se vende. O império até finais de oitocentos, princípios de novecentos, quase não passava de um arranhar da costa de África, aqui e ali sarapintado por viagens de pombeiros, de comerciantes afoitos mas já cafrealizados, de um que outro explorador, tudo feito sem regra, sem plano sem uma política clara da metrópole. Para não ir mais longe: leia-se com olhos de ler “O fim do império vátua e Mousinho de Albuquerque” de Julião Quintinha e A Toscano.
Mas tudo isto vinha, vem, à boleia da morte de Ki-Zerbo. Esperemos que lá no seu longínquo e quase desconhecido país (Burkina Faso) lhe honrem a memória e, doravante, lhe consultem o espírito que se foi juntar aos dos antepassados. E que derramem junto da sepultura o vinho de palma necessário para que a viagem no país dos mortos seja fácil.
Et le troisiéme larron de cette histoire est... um turco. Um turco amador de jazz e de rhythm ‘n’ blues? Um turco a quem os Rolling Stones devem muito? Um turco, sim senhor. Um turco como há milhares seguramente, culto, entusiasta de alguma da melhor música popular do século XX: Ahmet Ertegun, o mítico dono e fundador da Atlantic Records. Andam por algumas estantes daqui de casa belos discos com esse fabuloso selo. Coltrane, Ornette Coleman, Mingus algum MJQ, se não estou em erro, pelo jazz, Crosby, Stills Nash and Young ou Led Zeppelin pelo rock para não falar de tantíssimos heróis do rhythm and blues.
Corre por aí com demasiada insistência a tese tonta que basta saber tocar, ter uma boa canção ou um especial sentido do ritmo. Nada mais falso. É preciso sempre um editor, um cavalheiro que arrisque, que empurre, que dê ideias. E nisso Ertegun era pródigo. Gostava de música, gostava da música negra americana, tocava bastante bem, era autor de canções (algumas deles convertidas em hits) sob o nome de Nugetre, e divertia-se como um cabinda com a música dos seus autores. Morreu, como diz um jornal “com as botas calçadas”: de facto deu uma queda no concerto dos seus amigos Rolling Stones em finais de Outubro. Sobreveio-lhe uma lesão cerebral e morreu ontem. Aos 83 anos ainda dirigia a Atlantic mesmo que esta companhia pertença agora ao universo Warner Brs. Bem avisados, os compradores mantiveram-no à frente da empresa. E ganharam bom dinheiro com essa decisão, claro. Ertegun um grande senhor da música popular. Suponho que o meu amigo e leitor José partilha comigo este momento de luto. E de alegria pela excelente música que nos legou.
2 comentários:
Cheguei há pedaço, li agora. Só hoje de manhã li a notícia sobre o "turco".
Fui ver Amadeo, à Gulbenkian e de caminho, fui à cave, à "Festa dos livros " em feira franca, com 50% de desconto. Comprei dois ( três, vá lá) e de Psicologia que nem são para mim, mas para a minha mais velha.
Sobre o Amadeo, a exposição não se deve perder. Como não se deve perder a história de um certo quadro...poderemos algum dia ler?
Quanto ao Ahmet da Atlantic, vou pesquisar. Tenho na minha memória uns LP´s do início dos setenta, intitulados The Golden Age af Atlantic. Foi aí, num deles que ouvi pela primeira vez o America de Paul Simon, interpretado por...Yes. Yes, sir!
Até tenho a capa do disco. Vou ver outra vez.
Um leitor pergunta se este Pereira Gomes é irmão do outro, do Soeiro. Afirmativo, caro perspicaz! É sim, só não o disse porque me pareceu desnecessário valorizar o mano Alfredo com as plumas do irmão. Ele tem luz própria.
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