16 janeiro 2007

Diário Político 39

3 notícias e 1 epitáfio

A pergunta é: haverá algo mais detestável do que um tirano?
A resposta é: outro tirano abrigado à sombra de um estrangeiro fingindo ser um tribunal imparcial, regendo-se por regras de direito comummente aceites pela comunidade internacional.
Traduzindo em miúdos: um patifório de baixa extracção, chamado Saddam Hussein, governou o seu pais com mão de ferro, esmagou impiedosamente os oponentes, travou comanditado várias guerras encomendadas por amigos que rapidamente, uma vez a basse besogne realizada, se tornaram inimigos.
A fantochada do julgamento de Saddam, com assassínios de advogados de defesa, com a expulsão dos advogados estrangeiros (por todos o ex-procurador geral dos Estados Unidos, Clarke), com a substituição de juízes ligeiramente independentes por outros cada vez mais dependentes, é uma trágica anedota que, cedo ou tarde, terá consequências pouco agradáveis. Para os ocidentais sem dúvida, para os americanos de certeza e para os iraquianos todos.
Não contentes com o miserável espectáculo dado com a execução de Saddam, eis que hoje, ou ontem, é indiferente, rolaram mais duas cabeças. De tudo isto pode já retirar-se uma consequência: os principais crimes do regime do BAAS ficaram por julgar, se é que “aquilo” podia ser chamado julgamento. Mas há pior: ficaram por conhecer os cúmplices – e não seriam poucos... – dos crimes. Quem beneficiou? Ou doutra maneira: será que estas mortes expeditas não servirão outros eventuais e futuros acusados?
E no meio disto tudo: sabendo-se que nada do que é feito pelo “regime iraquiano” escapa ao rigoroso controle americano, como é que isto é possível? Que significa esta pressa toda?

2 Outra pergunta: seria monsenhor Wielgus, colaborador emérito da polícia política polaca do anterior regime, caso único?
Resposta em tom de pergunta: e tu, perguntador, és ingénuo, parvo ou as duas coisas ao mesmo tempo?
Resposta mais séria: neste momento já são noventa os piedosos sacerdotes polacos acusados de dar uma mãozinha à pide deles. Noventa? Por favor, camaradas religiosos, mais um esforço e chegarão à centena...

3 O O curioso Partido Popular de Espanha não suporta a ETA. Até aí estamos de acordo. Com gangsters não há namoros. Todavia se for possível convencer os gangsters a desistir do seu percurso de crápulas, a submeter-se à legalidade e à justiça, poder-se-á, pelo menos discutir com essa gentuça.
Todos os anteriores governos de Espanha, repito todos, passaram por essa fase, tentaram honradamente fazer a paz, discutiram com os encapuzados e viram as suas esperanças e os seus esforços frustrados. Porque a ETA tem duas caras: uma política e outra militar; porque a ETA sabe que na legalidade não terá um voto mais dos que o seu partido gémeo (Herri Batasuna) já conseguiu; porque a ETA sabe, sabe-o toda a gente, que só o terror tem refreado as cozes contrárias e feito fugir os seus opositores; por outras palavras: se a paz se fizer é provável que HB passe a ser um grupo marginal meramente simbólico sem representatividade nem apoio de massas.
Tudo isto, justificaria a meus olhos que um governo, de direita ou de esquerda, tentasse uma vez mais – e apesar de tudo – trazer a ETA ao redil. Foi o que fez Aznar mesmo sem trégua. Foi o que fez Zapatero depois de um trégua de longa duração.
Mas a ETA não é, e provavelmente nunca será, um grupo político normal. E porque o não é, voltou a matar, agora, que estava a um passo de se tornar normal.
Vai daí, o vozear estridente do PP aumentou de tom. E aumentou porque, durante uns meses, receou um acordo de paz que reduziria as suas possibilidades de regressar ao poder a breve prazo.
Perante o ataque miserável da ETA, e as duas mortes que ocasionou, mais duas a acrescentar ás mais de oitocentas que já cometeu, o governo Zapatero sai fragilizado porque tentou a paz. Sai fragilizado porque, e em política isso é imperdoável, foi suficientemente ingénuo para acreditar que esta vez, seria a boa vez. Mas o seu crime é só esse: ingenuidade.
E é por isso que o PP agora não quer nada senão o impossível: o regresso ao pacto anti-terrorista celebrado há anos e caído em desuso. Tal pacto, entre PP e PSOE exclui os actuais aliados parlamentares do PSOE. Voltar a ele é condenar o PSOE à minoria, e mesmo contando com a referida ingenuidade deste, parece que neste ponto o PP estica demasiado a corda.
E tanto a estica que entendeu não apoiar a manifestação que por toda a Espanha fez sair as multidões à rua contra a ETA. O PP começou por dizer que só compareceria se lhe garantissem que o dialogo com a ETA acabara. Depois perante a inanidade desta postura, exigiu que nas manifestações se usasse a palavra liberdade. Quando esta palavra foi incorporada voltou atrás dizendo que o PSOE não garantia que para o futuro não houvesse de novo conversações.
Ora bem: nenhum partido em Espanha, PP incluído, pode garantir que alguma vez, mais outra, se sentará a uma mesa com a ETA. Depois, o PP não quis ouvir a ETA que bem alto proclamava através da sua boca legal (Herri Batasuna) que o atentado só ocorrera porque o PSOE não abdicara de nada. Ou seja o atentado sucedeu porque o PSOE tivera exactamente a atitude que o PP jura que ele não teve!
Alguém compreende? Não? Então não percebem nada de política. Como eu!

4 Não tem nada a ver mas esta semana morreu um dos grandes: Chamava-se Jean Pierre Vernant e era uma sumidade em história da Grécia clássica. Aqui à minha frente estão duas obras fundamentais dele (“El individuo, la muerte y el amor en la Grécia Clásica” e “Mythe et pensée en Gréce ancienne”, esta em conjunto com Pierre Vidal Naquet). Vernant era além de um intelectual brilhante e modesto, um homem com uma vida exemplar, herói da resistência e pessoa pouco dada a obediências cegas. Foi um dos militantes mais inconformistas que o PCF teve e depois de abandonar o partido continuou a fazer estragos por onde passou. Curiosamente este homem politicamente irascível era um professor dedicado e quatro dos actuais historiadores (que no Le Monde de sexta feira testemunharam) deixam claro que não só o admiravam mas também que lhe deviam forte encorajamento para as carreiras.
Não sei porquê mas acho que os três casos acima descritos não surpreenderiam o velho professor.

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