O perigoso escultor Manuel Sousa Pereira entrou-nos hoje pela casa, onde se apontara para jantar, com ar carregado. Tu - e apontou-me um cachimbo enorme e fumegante – tu não falaste de mim.
Por uma e irrepetível vez na vida, entupi. Eu não falo dele? O homem passa e perpassa nos meus textos como a filha do grande Tanipur (e aqui uma paragem: esta criatura ora citada, filha de um grande “tanipur” ou coisa que o valha, aprecia num filme cujo título teria algo a ver com África, e que se produziu num verão no cinema ao ar livre dos bombeiros em Coimbra. Filme que ali chegava vinha mais ferido que S Sebastião e as mais das vezes os cortes nem sequer eram da censura. Eram do uso, do mau uso, da idade normalmente canónica da fita. Também por vinte e cinco tostões não se podia pedir mais, era o que faltava. Ora neste filme, “aventuras do capitão África”, lembrei-me agora, a dita cuja filha aparecia em diagonal da esquerda alta para a direita baixa – isto não é piada política...- numa liteira e alguém, interrogado dizia que ela era a filha do tal “tanipur”. E desaparecia! Nunca mais se via a dita cuja filha, os carregadores sequer a liteira. Dava um dinheirão para saber como é que seria o filme na sua integral versão só para ver o que é que era um tanipur e a que título a filha aparecia.) Fechado o parêntesis ocupemo-nos do ameaçador escultor cachimbante (e um cachimbo pode ser uma arma letal, ainda me lembro do meu amigo Gunderico, um sábio das arábias que foi a coimbra concluir uma licenciatura em biologia porque sendo de formação geógrafo mas trabalhando na área da investigação biológica, mais precisamente moscas, mosquitos e demais bicheza desse tamanho, não podia subir de categoria no instituto porque não era biólogo. O Gunderico já tinha não sei quantos bicharocos alados, chatos, pequeninos e zunzumbeantes com o nome dele, homenagem que outros biólogos lhe faziam pelas suas qualidades mas isso não tinha importância para a direcção do Instituto. Ou se formava em Biologia ou nada. Naquele tempo não havia universidades privadas dessas que dão diplomas á pressão pelo que o Gunderico gramou dois anos de Coimbra a fazer as cadeiras que lhe faltavam.
Ora este espécime de sábio verdadeiro além do nome estrambótico bebia litros de chá, era esquerdista, bem humorado e fumador de cachimbo. Deslocava-se com uma maleta cheia de cachimbos porque, ao que parece, um cachimbo só deve ser aceso uma vez de xis em xis horas. Assim sendo, ele precisava de uma bateria de cachimbos para passar a tarde. Um desses cachimbos, a quem depois chamámos “tomahawk” tinha bem dez polegadas e um fornilho onde se podiam assar castanhas. Uma enormidade!
Sendo o Gunderico veterano e eu caloiro íamos os dois ao cinema ele a proteger-me. Um trupe reles (como todas as trupes) quis rapar-me mas o Gunderico avisou que era veterano e que se fosse preciso daria com o cachimbo “nos cornos do primeiro que me tocasse” (sic). A trupe convencida pela veterania ou temerosa à vista do cachimbo enorme e aceso, escafedeu-se na noite de breu, como os vampiros do Zeca.
Já me ia perdendo. Voltemos ao cachimbo do Manuel e ao dono do mesmo instrumento. Depois de uns momentos de estupor e da recordação viva do Gunderico, perguntei-lhe onde é que eu o não citava. Nas obras, respondeu-me desabrido. Nas obras da tua casa, em que te arruinaste. Então te lembras que desenhei as estantes? Lembrar, lembrava-me, basta olhar para as estantes que povoam todas as divisões cozinha incluída, casas de banho exceptuadas. Centenas de metros de estantes lacadas a cinza claro onde se acoitam dezasseis mil volumes, mais um menos um. Custaram-me os olhos da cara e fizeram feliz o senhor Oliveira do capachinho, brioso carpinteiro e o senhor Fernando, pintor e lacador de mão cheia e pescador de tainhas.
Expliquei ao Manecas que essa obra fora anterior a estoutra a da falência. Custara também larga cópia de morabitinos mas isso acontecera num inverosímil tempo de vacas gordas e que se depauperara os cofres de mcr ainda assim não o deixara de tanga, como da vez sucessiva e derradeira. O escultor acalmou-se, guardou o cachimbo e dignou-se comer uma sopinha, um arrozinho de manteiga acompanhado de cogumelos salteados com presunto. Mas avisou: põe lá na tua chafarica que eu desenhei estantes, móveis de casa de banho, um inteiro roupeiro onde nem sequer faltam gavetas pequeninas para a lingerie da CG e ainda ajudei a pendurar os quadros... – Está descansado. – respondi. – é para já!
É o mínimo que se pode fazer por quem imprime todos os dislates que escrevo. Só não sei como é que vai reagir quando souber que me enganei na numeração dos “estes dias que passam" onde saltei do 52 para o 59 e daí para o 60. Já corrigi mas a verdade é que ele já os imprimiu. Acham que lhe devo dizer, ou espero que ele, que já está surdo como uma porta, não dê por esta minha habilidade em multiplicar textos como outros multiplicam cadeiras na universidade?
A leitora amável que me escreveu a pedir um texto sobre a política nacional que me desculpe. Não há tema relevante neste momento e por isso contente-se com esta inocente digressão pelas desventuras do escultor MSP, desenhador de estantes.
Na ilustração: Magritte, claro. Ou dito de outro modo: nem tudo o que luz é ouro. Nem tudo o que se dá por certo, o é de facto... Ponhamos: as coisas são ou podem ser duvidosas e quando não se esclarecem, é pior a emenda do que o sorvete.
3 comentários:
Um homem enche-lhe a casa de obras de arte, pendura-lhe os quadros, desenha-lhe as estantes onde se lhe adormece a sabedoria, tapa-lhe as janelas com rede durante as obras para lhe salvar os trastes de mao alheia, desenha-lhe roupeiros de estrela de cinema, vai lá a casa jantar para quebrar o tédio da pobre CG que o atura e nem uma citação!!...MSP-Escultor
É curioso. Há de facto um MSP, escultor, como este mas incapaz (genética e informaticamente...) de põr um comentário.
Este comentário vem então de quem? do marceneiro?
MCR-cronista
Quem tem amigos assim...
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