17 abril 2007

Au Bonheur des Dames 59


It's a Beautiful Day!

Já vos estou a ver, leitorinhas gentis mailos prezados cavalheiros que me aturam (continuem, que eu gosto de leitores, eu mesmo sou um leitor inveterado, isto vem-me de pequeno, e dos familiares todos eles leitores esforçados, lá em casa os livros tinham mais utilidade do que equilibrar o pé de uma mesa desfalecente e perni-curta.) a dizerem para os vossos botões: o homem nunca foi certo mas desta ver passou-se.
Passei nada, queridas amigas, passei nada.
É que hoje celebram-se os anos da Tia Néné, outra leitora do catorze, e mais um aniversário do 17 de Abril de 69, em Coimbra, menina e moça. Quase quarenta anos! Arrium porrium catanorum qunque! Trinta e oito anos, já!
Mas vamos ás nossas devoções. O 17 A, que é assim que o conhecem os milhentos intervenientes. Estamos vivos malta (esta é para eles, hoje o telefone tocou umas quantas vezes, e do outro lado era uma voz jovial: Marcelo, um abraço! E eu: outro para ti velho/a compincha. Bem nos divertimos!
Logo pela manhã, fui tomar um café com o Manuel Simas. Hoje, é o 17, pá! - Bem me lembro, retorquiu. E durante uns breves minutos ficámos calados a olhar para ontem, para os amigos e companheiros que já cá não estão, para os nossos vinte anos, a nossa esperança, as nossas batalhas numa primavera inesquecível que se prolongou muito além do que o calendário lhe permitia e o bom senso aconselhava.
É que esta greve de 69 bateu todos os recordes. Primeiro o da adesão. Maciça! E quando digo maciça quero dizer isso mesmo. Os fura greves foram uma pálida minoria, amedrontada, que ia a exame dentro de carrinhas da polícia e nem dentro da sala se livravam dos olhares de desprezo de muito jovem assistente, já não falando nos archeiros e bedéis que os olhavam com aquele ar de quem está com vontade de ir à retrete...
Em segundo lugar, a longa crise de 69 foi a crise das mulheres. Elas inundaram as ruas em piquetes, animosas, desculpem lá aquilo parecia um quadro de Delacroix, a Liberdade guiando o povo. Que coragem! Que determinação. Com que segurança as raparigas de Coimbra entraram na greve, como que dizendo Este é nosso lugar! A polícia cevou-se nelas prendendo um bom magote. Eu estava lá e vi! E ainda vejo! Saravah Isabel Pinto, Joana, Fernanda da Bernarda, Teresa Feijó, Guida Lucas, Maria João Delgado!
Em terceiro lugar, espanto dos espantos, a greve de 69 foi vitoriosa. Caiu um reitor, caiu um ministro (esse Saraiva que agora fala tão democrata da nossa história numa especial e redutora versão dele mesmo). Uma vez ate nos pagou um café, à Isabel, ao Redondo Lopes –esse mesmo presidente da “tranquilidade” e a mim. Não serviu de nada porque nós de papo cheio continuámos a azucrinar-lhe a cabeça...
E além dessas quedas, outro milagre, os estudantes que tinham sido compulsivamente enviados para Mafra, regressaram a Coimbra para continuar os estudos. E a Universidade deu-nos mais uma época especial de exames. E o novo reitor, da confiança dos estudantes, Professor Doutor Gouveia Monteiro, foi a uma Assembleia Magna, solicitar o nosso apoio.
Só quem conheceu Coimbra é que consegue perceber o que isto teve de revolucionário.
A “insurreição estudantil” que grassava na Europa, nos Estados Unidos e no México, chegou a Coimbra com alguns meses de atraso mas isso só nos atiçou mais a vontade de, ao entrar nessa luta geral e generalizada, o fazer pela porta grande, escancarada.
Volta e meia encontro amigos, companheiros e colegas desse tempo e no primeiro momento, o dos abraços, do examinar as respectivas barrigas, os cabelos brancos, as rugas, há sempre um brilhosinho no olhar, uma senha e contra-senha, vinda desses dias longínquos de luta, de entusiasmo, de abnegação e camaradagem.
Eu estou a escrever isto com muito mais coração que cabeça, mas que querem, o 17 de Abril é o nosso “Crispin’s day” (Shakespeare, Henrique V), um momento grave e mágico na nossa formação de cidadãos. E como no discurso de Henrique, poderemos, agora que tantos anos passaram, contar a filhos e netos (eu aos sobrinhos e à enteada...) como nesse dia honrámos uma academia, uma universidade e uma cidade que nos acompanhou festiva e solidariamente.


* O título é inspirado numa banda dos anos sessenta em S Francisco "It's a bautiful day" (David Laflamme, Linda Laflamme, Patty Santos, Hal Wagonet, Mitchell holan e ValFuentes) cujo primeiro LP tem este título que é tambem o nome do grupo.
ilustração: "A liberdade guiando o povo", Eugene Delacroix

1 comentário:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Quando leio estes testemunhos, julgo-me sempre devedor de quem teve a coragem necessária em momentos tão difíceis. Um abraço, mcr