2ª CARTA AO MEU AMIGO E CAMARADA DE BLOG JCP
Descansem as leitoras que isto não é cena de varapau, sequer troca grossa de opiniões mas tão um pretexto para homenagear a generosidade do meu confrade e, a talho de foice, explicar melhor algumas coisas. Para quem o não conhece senão de escrita, o JCP é um sólido cavalheiro, portista ferrenho “andrade” mesmo, licenciado em História (pela Universidade – pública – do Porto e não pela “de Kabul on the rocks”) pai babado de um filho varão, bom garfo e fumador de enormes charutos cubanos. É também presidente da Assembleia Municipal do Marco de Canavezes, terra em que, durante anos, manteve bem acesa a chama da resistência contra um prepotente (sendo nisso acompanhado por dois nossos amigos e ex-bloguistas do Inc: o Carteiro e o compadre Esteves (no civil respectivamente Coutinho Ribeiro e João Magalhães). Esta reduzida trindade bateu-se, e de que maneira, pela democracia em terreno hostil e muitas vezes ameaçador. Só por isso mereciam a coroa de louros dos antigos atenienses). E agora a cartinha:
Meu caro JCP
Faça-me o favor de ler esta descosida prosa. Acenda esse magnífico Cohibas, sente-se neste maple aqui do canto, velho e coçado mas muito confortável, não me interrompa, e oiça.
A um texto aí em baixo, sobre a crise de 69 em Coimbra, V. sempre generoso comentou que se sentia na obrigação de agradecer a quem nessa época enfrentou a polícia e o resto para defender uma vaga ideia de liberdade e democracia.
Ora, mesmo agradecendo essa simpatia, V. –sem querer – põe-me numa posição delicada. É que a malta desse tempo e eu próprio não se julga credora de agradecimento sobretudo vindo de quem, na altura, ou não era nascido ou andaria aí pelo jardim escola. O seu caso, digamos. A menos que, num ímpeto de solidariedade, a pequenada do infantário, de bibe e chupeta entendesse lançar-se como um só homem (ou uma só mulher) sobre a desinfeliz monitora, símbolo da autoridade lá do sítio e a obrigasse a comer as papas todas e a fazer sozinha, e num canto, o cocó das seis da tarde. Eu sei, presumo saber, que um grupo de galfarrinhos do tamanho do seu filho, ou mais pequenos ainda, é pior que uma inteira tribu de sioux em pé de guerra. Mas mesmo tendo em conta as vantagens tácticas do uso indiscriminado duma tropa de palmo e meio julgo que não se devem mobilizar seja para que causa for essas criaturinhas. O dever delas é, para já, brincar, brincar muito, aprender a brincar com os outros meninos. Isso é (era) um dos direitos que reivindicávamos em 69 para os filhos dos que não podiam andar na universidade.
De facto, caríssimo confrade, a malta preocupava-se pouco, naquela altura, com o lugar que viria a ter na história. Moviam-nos outras comoções, mais ingénuas sem dúvida mas seguramente mais nobres. Defendíamos a parca autonomia da Universidade, as poucas liberdades, a custo mantidas, das Associações de Estudantes, o direito a pensar pela própria cabecinha, a vontade cidadã de influir ligeiramente na vida do Estado e da sociedade. É pouco? Claro que é pouco mas, na época, era muito. Demais até na óptica do poder político. Demais mesmo, na óptica de boa parte da população que, por medo, por desinteresse, por ignorância ou por inconfessado interesse em conservar privilégios exorbitantes, não nos olhava com olhos ternos.
Depois havia um segundo e importante factor: a guerra, a guerra longínqua, mas temivelmente próxima, nas colónias. Guerra que era um destino garantido para qualquer um, durante ou no final do curso. Guerra com mais mortos do que os confessados e muito menos do que os propagandeados, evidentemente. Uma guerra estúpida porque de contra-guerrilha (e veja-se agora o Iraque onde, todos os dias morrem civis e, todas as semanas, militares da mais poderosa potência militar mundial), sem fronteiras nem frentes de combate, insidiosa, desgastante, sem perspectivas políticas algumas.
Finalmente, e porque não, sobretudo quando se tem vinte anos e não se quer acreditar que essa é a pior idade possível, um vago desejo de mudar o mundo, de mudar a vida, ou de mudar um pouco o sufoco em que se vivia.
E tudo isto, creia-me, JCP, sem olhar para eventuais prebendas, futuros privilégios, reconhecimento público e tudo o resto. Claro que, hoje em dia, há muito rapaz ou rapariga desse tempo ingénuo e solto, que vive à custa do capital então adquirido, da notoriedade conquistada por um gesto, um discurso, uma prisão. Mas também há outros, e quero acreditar que são uma maioria, que deram o passo decisivo apenas por solidariedade, amizade, desejo de liberdade, de viver, por aventura, porque não?, porque estavam fartos de ver a gandulagem agir impudente e impunemente. Essa é a maior riqueza que amealhámos nesses meses de vinho e rosas, de musica e fraternidade.
Aqui chegados, vejamos: tivesse V. vinte anos em 69 onde é que estaria? Com quem estaria? Como agiria? Que sentiria?
Conhecendo-o o pouco que conheço, meu caro JCP, não tenho qualquer receio de o ver a pintar cartazes, a colá-los, a conspirar em longuíssimas reuniões nocturnas de onde se saía quase a nadar por cima de uma nuvem de fumo (de cigarros, JCP, de cigarros, às vezes até de beatas por já não haver sequer um paivante inteiro para acender) em ruidosas assembleias, em piquetes a fugir da polícia, a negar-se malgrado os protestos familiares a ir a exame numa carrinha da polícia, a apanhar nesse lombo, e desculpe lá, V tem lombo que chegue para um largo par de bastonadas, a fugir por ruas e becos, a refugiar-se numa miraculosa porta aberta por um(a) qualquer cidadã(o) que a solidariedade dos habitantes de Coimbra, os “futricas” não foi palavra vã, bem pelo contrario.
Resumindo e acabando, ao agradecer, v está a agradecer a si mesmo o que é um redobrado e inútil trabalho. Vamos mas é pensar seriamente num jantarinho a preceito com os nossos amigos incursionistas, em sítio decente e já agora com algum leitor que ainda não esteja farto de nos aturar e nos queira ver ao vivo. Vale?
Um abraço deste seu
mcr
na ilustração: 17 de Abril de 1969, 1o horas da manhã: forças militares desfilam perante o Chefe de Estado, Américo Tomás. Atrás encostados ao "hospital velho" numerosos grupos de estudantes com cartazes reivindicativos. Serão eles os protagonistas (ou o protagonista colectivo e único) deste dia. Mas isso será para daqui a uma hora e pouco...
Meu caro JCP
Faça-me o favor de ler esta descosida prosa. Acenda esse magnífico Cohibas, sente-se neste maple aqui do canto, velho e coçado mas muito confortável, não me interrompa, e oiça.
A um texto aí em baixo, sobre a crise de 69 em Coimbra, V. sempre generoso comentou que se sentia na obrigação de agradecer a quem nessa época enfrentou a polícia e o resto para defender uma vaga ideia de liberdade e democracia.
Ora, mesmo agradecendo essa simpatia, V. –sem querer – põe-me numa posição delicada. É que a malta desse tempo e eu próprio não se julga credora de agradecimento sobretudo vindo de quem, na altura, ou não era nascido ou andaria aí pelo jardim escola. O seu caso, digamos. A menos que, num ímpeto de solidariedade, a pequenada do infantário, de bibe e chupeta entendesse lançar-se como um só homem (ou uma só mulher) sobre a desinfeliz monitora, símbolo da autoridade lá do sítio e a obrigasse a comer as papas todas e a fazer sozinha, e num canto, o cocó das seis da tarde. Eu sei, presumo saber, que um grupo de galfarrinhos do tamanho do seu filho, ou mais pequenos ainda, é pior que uma inteira tribu de sioux em pé de guerra. Mas mesmo tendo em conta as vantagens tácticas do uso indiscriminado duma tropa de palmo e meio julgo que não se devem mobilizar seja para que causa for essas criaturinhas. O dever delas é, para já, brincar, brincar muito, aprender a brincar com os outros meninos. Isso é (era) um dos direitos que reivindicávamos em 69 para os filhos dos que não podiam andar na universidade.
De facto, caríssimo confrade, a malta preocupava-se pouco, naquela altura, com o lugar que viria a ter na história. Moviam-nos outras comoções, mais ingénuas sem dúvida mas seguramente mais nobres. Defendíamos a parca autonomia da Universidade, as poucas liberdades, a custo mantidas, das Associações de Estudantes, o direito a pensar pela própria cabecinha, a vontade cidadã de influir ligeiramente na vida do Estado e da sociedade. É pouco? Claro que é pouco mas, na época, era muito. Demais até na óptica do poder político. Demais mesmo, na óptica de boa parte da população que, por medo, por desinteresse, por ignorância ou por inconfessado interesse em conservar privilégios exorbitantes, não nos olhava com olhos ternos.
Depois havia um segundo e importante factor: a guerra, a guerra longínqua, mas temivelmente próxima, nas colónias. Guerra que era um destino garantido para qualquer um, durante ou no final do curso. Guerra com mais mortos do que os confessados e muito menos do que os propagandeados, evidentemente. Uma guerra estúpida porque de contra-guerrilha (e veja-se agora o Iraque onde, todos os dias morrem civis e, todas as semanas, militares da mais poderosa potência militar mundial), sem fronteiras nem frentes de combate, insidiosa, desgastante, sem perspectivas políticas algumas.
Finalmente, e porque não, sobretudo quando se tem vinte anos e não se quer acreditar que essa é a pior idade possível, um vago desejo de mudar o mundo, de mudar a vida, ou de mudar um pouco o sufoco em que se vivia.
E tudo isto, creia-me, JCP, sem olhar para eventuais prebendas, futuros privilégios, reconhecimento público e tudo o resto. Claro que, hoje em dia, há muito rapaz ou rapariga desse tempo ingénuo e solto, que vive à custa do capital então adquirido, da notoriedade conquistada por um gesto, um discurso, uma prisão. Mas também há outros, e quero acreditar que são uma maioria, que deram o passo decisivo apenas por solidariedade, amizade, desejo de liberdade, de viver, por aventura, porque não?, porque estavam fartos de ver a gandulagem agir impudente e impunemente. Essa é a maior riqueza que amealhámos nesses meses de vinho e rosas, de musica e fraternidade.
Aqui chegados, vejamos: tivesse V. vinte anos em 69 onde é que estaria? Com quem estaria? Como agiria? Que sentiria?
Conhecendo-o o pouco que conheço, meu caro JCP, não tenho qualquer receio de o ver a pintar cartazes, a colá-los, a conspirar em longuíssimas reuniões nocturnas de onde se saía quase a nadar por cima de uma nuvem de fumo (de cigarros, JCP, de cigarros, às vezes até de beatas por já não haver sequer um paivante inteiro para acender) em ruidosas assembleias, em piquetes a fugir da polícia, a negar-se malgrado os protestos familiares a ir a exame numa carrinha da polícia, a apanhar nesse lombo, e desculpe lá, V tem lombo que chegue para um largo par de bastonadas, a fugir por ruas e becos, a refugiar-se numa miraculosa porta aberta por um(a) qualquer cidadã(o) que a solidariedade dos habitantes de Coimbra, os “futricas” não foi palavra vã, bem pelo contrario.
Resumindo e acabando, ao agradecer, v está a agradecer a si mesmo o que é um redobrado e inútil trabalho. Vamos mas é pensar seriamente num jantarinho a preceito com os nossos amigos incursionistas, em sítio decente e já agora com algum leitor que ainda não esteja farto de nos aturar e nos queira ver ao vivo. Vale?
Um abraço deste seu
mcr
na ilustração: 17 de Abril de 1969, 1o horas da manhã: forças militares desfilam perante o Chefe de Estado, Américo Tomás. Atrás encostados ao "hospital velho" numerosos grupos de estudantes com cartazes reivindicativos. Serão eles os protagonistas (ou o protagonista colectivo e único) deste dia. Mas isso será para daqui a uma hora e pouco...
2 comentários:
Caro amigo, eu sei que se há característica que marca a (maior parte) da malta que andou nessas lutas é a humildade.
"...solidariedade, amizade, desejo de liberdade, de viver, por aventura" - aí está um magnífico cardápio de valores e ambições. Se eu seria de tal cepa? O meu bom amigo tem a generosidade de pensar que sim e eu fico contente por isso.
Aliás, a sua deferência para comigo é tanta que chega ao ponto de me "eleger" presidente da Assembleia Municipal. É certo que fui candidato a tal, mas os meus conterrêneos não me deram os votos suficientes. Logo, exerço o mandato mas não presido.
Finalmente, o jantar. Vamos marcá-lo para breve, sim senhor. Quanto mais não seja a pretexto do terceiro aniversário do Incursões, que se cumpre no próximo mês.
Um abraço
"Touché", Zé Carlos!
Mas que V merecia ser presidente da AM merecia. é que já tem os charutos da função. E ainda por cima é V que os paga. Olhe que poupança para o erário municipal!...
Um abraço
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