11 abril 2007

Estes dias que passam 54




A volúpia de pagar
Há histórias com fim feliz? Provavelmente. Menos do que gostaríamos mas mais do que, num súbito ataque de pessimismo, aceitamos. E é por isso que hoje vos bato à porta. De facto, comecei um ciclo de modestas celebrações devidas ao facto de, como a Argentina de Kirchner, ter hoje liquidado a minha dívida externa. Uma dívida que me trazia com freio e bridâo desde 2002, data em que começou o serviço da dívida de mcr.
Voltando ao princípio: no final dos noventa, procedi a uma gigantesca remodelação da minha casa. Sabem como é, não? Começamos por fazer planos cautelosos e cuidadosos de modificar o mínimo possível, fazemos contas e mais contas e finalmente damos ordens para avançar.
No meu caso tudo começou com uma simples substituição da alcatifa por chão de madeira. Convenhamos que já não era despiciendo porque o andar tem mais de 250 m2. O senhor Brandão, meu carpinteiro titular (hoje emigrado na Inglaterra) encarregou-se da obra. E começou por sugerir uma vistoria à canalização. O andar vinha dos primeiros anos setenta... “Brandão, arranje um canalizador!
O canalizador apareceu. Que sim que arranjava tudo. “E o dr. quer canos por dentro ou por fora?” Aconselhou por fora. Mais barato, mais possibilidades de dar com uma fuga, mais fácil de reparar. Concordei. E juntei mais uns zeros ao projecto.
Quem quer canos por fora precisa de os fazer passar disfarçadamente pelos corredores. A melhor solução era fazer um tecto falso. O tecto dos dois corredores representava 28 m2. E era preciso um electricista para refazer a iluminação dessa zona.
O sr. Marques, electricista, apareceu sempre pela mão do Brandão. Deu duas voltas á casa e sentenciou: “Por mim mudava isto tudo. Há fichas com espelhos partidos, há fios em mau estado, se calhar quer fichas noutros sítios, vamos substituir tudo, contador incluído, que é do tempo dos afonsinos”.
Mais uma verba respeitável no orçamento.
As casas de banho tinham azulejos em mau estado, as louças sanitárias mostravam as rugas de uma vida dissoluta e acontecia mesmo que já nem todas se assemelhavam. Isto em quatro casas de banho quer dizer muito. E muito mais se, em vez de pôr azulejos novos em cima dos outros, como previa, se verificava a necessidade de deitar tudo abaixo. O sr. João, pedreiro e destruidor de paredes, que andava sempre de boné, porventura para se proteger da queda de algum prédio, garantiu-me que deitaria as paredes abaixo num abrir e fechar de olhos e cumpriu. Mas com uma contrapartida. Mais uns centos de contos. “E fica tudo bem para mais trinta anos, sr. dr.!”
A CG sugeriu que já que se ia mexer nas casas de banho talvez valesse a pena dar um toque na cozinha. “Paredes e chão, mais nada!” –sentenciou. Neste momento, o inefável Brandão, carpinteiro e marceneiro, olhou para os armários da cozinha e declarou-os aptos para uma fogueira. Fogueira mixuruca, claro, que esta madeira está podre.
Façam-se novos armários! E já agora até ao teto para ganhar maior capacidade.” – desta vez era eu, majestosamente. E mais um armário para os livros de cozinha. Uma cozinha sem livros é como uma biblioteca sem panelas...
E uma pintura nas salas comuns. E um forno novo. E quem diz forno diz maquinas de lavar a louça e a roupa. E uma placa de gás. E umas pedras bonitas para as casa de banho. E... E ... E...
Nesta altura do campeonato o Brandão declarou que valia a pena pôr portas de vidro entre a sala de jantar e zona de copa o mesmo se devendo fazer entre a copa e corredor de entrada. Sempre fica com mais luz. E janelas duplas! E arranjar as persianas que estão em vias de morte macaca. E cortinas.
O sr. Dr. não vai substituir os puxadores? Estes são uma vergonha” “Manda mais treze puxadores, Brandão!”
E mais não ponho nesta carta porque todos quantos conseguiram aqui chegar já perceberam. Obras, sabe-se como começam mas nunca como acabam.
Paguei tudo. Rapei o cofre do banco, os fundos, o porquinho das moedas, tudo. E entrei na nova casa feliz e sem cheta.
O destino malicioso – a malta arranja sempre maneira de culpar o destino, os deuses, uma bruxa, os amigos, os vizinhos ou, finalmente, o governo – pregou-me então uma partida. Os meus condóminos chegaram à conclusão que urgia “recuperar” o prédio. E a história do meu andar repetiu-se, como aqueloutra do velho Marx mas desta vez em tom de drama. Eram tantas e tais as “patologias” descobertas por um senhor Professor Engenheiro, especialista neste ramo que suspeitei que estávamos a viver em Lisboa em 1755 uns meses antes de Novembro. O relatório do sr. professor engenheiro, era uma versão moderna das sete pragas do Egipto. Ao lê-lo já não sabíamos se habitávamos um prédio excelente, numa zona também excelente, ou um casinhoto na zona histórica da cidade.
E as obras fizeram-se durante ano e meio. Ano e meio a viver enclausurados entre andaimes, barulho, pó e um par de ladrões que nos obrigaram a contratar um guarda para a noite.
Eu, por mim, aceitei as obras com o mesmo à vontade com que um inocente caminha para o patíbulo. É que me pediam uma soma enorme, umas dezenas de milhares de euros, para ser mais preciso. Euros que não tinha. Caí numa tremenda depressão. Os bancos ofereciam os seus serviços com quase tanta generosidade quanta a soma que pediam de juros. E logo a mim, anti-capitalista convicto...
Abreviando, um amigo (dois aliás que a mulher dele também teve voto na matéria), de que ocultarei o nome porque senão eles matam-me, chegou-se de mansinho, num dia em que tínhamos almoçado juntos e, zás!, ofereceu-se para me emprestar o cacau. Aceitei, claro. Um empréstimo gordo, sem um papel de permeio, sequer um aperto de mãos. Um empréstimo por um prazo longo, cinco anos, assim sem mais nem menos. Aceitei e pus como condição pagar um juro que me pareceu óptimo e que pouco maior seria do que, com segurança e conforto, lhe rendia no banco.
Amigos destes há poucos, quase nenhuns, provavelmente.
E começou o calvário do pagamento. Os dois primeiros anos correram bem, depois as coisas tornaram-se mais difíceis não só porque eu ganhava menos mas sobretudo porque o custo de vida subiu como todos sabem.
Ora hoje, com cerca de cem dias de atraso em relação ao prazo que tínhamos fixado, entrei triunfante no banco, e dei a ordem de transferirem para a conta dele, o resto (e era bastante, apesar de tudo) que faltava para pagar. Tudo até ao último ceitil. E vim para casa, fazer a listagem dos pagamentos durante cinco anos (e três meses...) data e importância por mês e ano que amanhã ou depois eles receberão. Aliás só nesse momento é que provavelmente se darão conta que a sua conta à ordem está com um substancial aumento. A menos que resolvam dar uma volta por este blog e queira dar-se á pachorra de ler este arrazoado.
Se o fizer, aqui fica uma mensagem
O dinheiro paga-se, o favor agradece-se, a amizade é que é impossível de exprimir. Talvez um aperto de mão, um qualquer gesto, um simples olhar, possam dizer do meu alivio que, ele desculpará, é ainda maior do que a minha gratidão.
As palavras para mim têm um forte valor. Por isso vou escrevendo por aqui. Será que ele perceberá a força do OBRIGADO com que fecho este texto?

na gravura: o inefável Tio Patinhas que hoje é de certeza mais pobre do que eu.
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2 comentários:

L.P. disse...

Só Vexa para dar assim a volta ao ao texto, que é como quem diz, à situação, acabando no tom optimista e agradecido à vida que tanto lhe aprecio :)

Abraço da Madame

M.C.R. disse...

Como a Madame sabe se chorar desse resultado,os pobres nasceriam sem olhos.
Como não dá, deixemos as lágrimas para a comoção sincera, para o pesar profundo e ala que se faz tarde.

Ravi de vous revoir trés chere Madame, absolument ravi!