23 abril 2007

O leitor (im)penitente 14


Pela mão de Verne e Xenofonte
ao encontro dos que se foram
e do que não fui



Um moderador deve ser isso mesmo, moderador. O que, eventualmente, pode querer dizer que o moderador é como o mirone de um jogo de cartas. Está ali, a olhar para os jogadores, a ver as cartas sair, sem arriscar nada mas também sem meter o bedelho onde não é chamado.
Os nossos vizinhos espanhóis tem um dito altamente esclarecedor: o mirone está calado e fornece tabaco.
Isto no tempo em que o tabaco era livre e franco à volta de uma mesa de jogo. Agora, que é politicamente incorrecto fumar, inclusive no meio do deserto, o mirone reduz-se ao silêncio. A menos que forneça caramelos e pastilhas elásticas a um desgraçado grupo de jogadores que não sabem o que hão de fazer enquanto os outros jogam.
Ora eu tenho pouco jeito e menos vontade ainda de deixar os meus jogadores engordar desmedidamente a aviar caramelos como quem dá chupões num cigarro imaginário e aceso.
E depois... depois, acho que um moderador que não arrisca não modera coisa nenhuma ou, no melhor dos casos, modera-se a ele. Daí que, embora assumindo esse papel de anunciar os intervenientes e ocupar-me do expediente (quem fala, quanto tempo, quem é que na plateia quer dizer qualquer coisa) entendi deixar nesta mesa, que muito me honra, um pequeno desafio.
Vamos falar do desejo do desconhecido. Do desejo do desconhecido como um dos temas destas jornadas sobre Literatura em viagem. Da viagem para o desconhecido, do desconhecido como motivo da viagem...
Como programa dá para tudo, inclusivamente para uma pequena tese que me surgiu no momento em que, na quinta feira, enviava via blog uma notícia deste encontro. Quem viaja, viaja por alguma razão mesmo que, no preciso instante de bater a porta atrás de si, não tenha bem certo que rumo tomar. Ou terá?
Há muitos anos já, mais do que os que eu gostaria de contar, li algures um verso de Goethe: Warum gehen wir? Para onde vamos?
E logo a seguir: Immer nach Hause. Sempre para casa!
Este verso persegue-me desde há muito e não é a primeira vez que o cito. Gosto de viajar, de conhecer novos caminhos, novas gentes, outras línguas e outras comidas. Comecei cedo a correr mundo com Júlio Verne e Salgari, depois com London, Conrad, Melville para já não falar na mais exaltante viagem de todas, tão bem contada por Xenofonte de Atenas na sua Retirada dos 10.000.
E é dele que me valho para terminar este pequeno desafio à plateia e à mesa: o desejo do desconhecido não será apenas o desejo de regresso a uma casa, à nossa casa, à casa da infância feliz e descuidada?
Será que Goethe (e os poetas, como se sabe, conhecem as coisas antes de nós) tinha razão, e a viagem, continuamente renovada, não é mais do que a volta impossível á casa de onde partimos, á idade de oiro, ao convívio dos que já se foram e que esperam, num impreciso ponto do nosso passado, por nós?
E por aqui me fico. Não vos trouxe tabaco, muito menos oiro, mirra ou incenso, apenas esta mão cheia de sal, sinal inequívoco da hospitalidade. Sinal de que chegámos, vocês, todos, e eu a casa. Sejam bem-vindos.

Este foi o texto lido pelo vosso amigo e criado na mesa redonda "O desejo do desconhecido" nas segundas jornadas de "Literatura em viagem" em Matosinhos.
gostaria de o dedicar, se é que o mereço, aos meus amigos Liliana Palhinha, Manuel Sousa Pereira, José António Barreiros, David Ferreira e Coutinho Ribeiro, bloggers e leitores, que me acompanharam nessa provação. camaradas, non sum dignus, etc... mas, de todo o modo, muito obrigado.

Na gravura: "Libreria II" de L. Patrignani

2 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro amigo, não pude estar presente, pois estava refém do meu infante, no Dragão, a ver esse FCP, 3 - Beleneneses, 1. Para ele, o desejo do (des)conhecido é ganhar o campeonato!

o sibilo da serpente disse...

Obrigado, pela parte que me toca. E foi um prazer.
O Aurelino, essa figura ímpar, foi meu contemporâneo em Coimbra. Vi-o, mas já estava de saída.