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Estou a ler, melhor a folhear, um par de livros, enfim uma boa dúzia, que até trouxe para a escrivaninha (amo esta palavra: escrivaninha. Sabe-me à compota de laranja amarga da avó Aldina - a Velha Senhora, para os que me lêem há mais tempo - ao barómetro da Antiga Casa Ribeiro que um genial artífice me reparou. E que, de passagem, me deu uma lição comovente do amor pela profissão, do gosto pela coisa bem feita da simplicidade tão Porto de outros tempos, que o senhor, era um senhor!, irradiava.) enquanto vou ouvindo a Ute Lemper cantar. Ó deuses antigos, ó velhos velhíssimos Heinzelmännchen, de que herdamos o nome, protejam esta mulher, mimem-na, acarinhem-na, forneçam-lhe Pfannküchen frescos, tantos quanto ela pedir. Eu devia dizer berliner Pfannküchen para distinguir a simples filhó da vera bola de Berlim. Ai que saudades de um Berlim que já não há, mesmo dividido mas tão cheio de futuro e nós tão novos e tão capazes de espanto! Gosto de pensar que ainda mantenho intacto o sentido do espanto. E a comoção. E a alegria breve e simples, limpa e inicial que se experimenta com um novo livro, Jesus que pilha aqui tenho, livros velhos e novidades, desde “Os Cangaceiros” de Lins do Rego até um divertido (enfim!) “Erase una vez ele amor pêro tuvo que matarlo” de Efraim M. Reyes com passagem pelo “(Des)caminho para Santiago” e livros de poemas de Angel González, António Gamoneda e do José Tolentino de Mendonça que me tem deixado surpreendido. O homem tem força. Muita.
E a Ute Lemper continua, agora com uma canção de Brel, que dá a exacta medida da sua reinterpretação. Melhor dizendo acaba. Salto para um programa onde vejo o Mia Couto. O programa agora é sobre África. Sobre os estereótipos sobre África. De vez em quando encontro pessoas que foram até lá. Para a praia! Não se lhes peça opinião, muito menos descrição. Foram tomar banho. Os pretos são todos iguais. Iguais e pretos. Descobri, sem surpresa, devo dizer, que ninguém vem com qualquer ideia sobre a realidade vista, visitada. Encerrados num resort, num grande hotel, aquilo que os deveria surpreender não surpreende, tanto lhes fazia África ou a Dominicana, desde que haja praia e um moleque para trazer o daiquiri ou whisky, preto ou mulato é igual, um criado é um criado, pode até ser branco mas isso é mais difícil nos trópicos ou adjacências similares.
O Mia, coitado, bem que se esforça mas o peso de uma África tecnicolor, muito Rainha Africana, torna surda toda a gente. E, todavia, ao que parece, viemos todos de lá, em levas sucessivas, ao azar dos caminhos, perdendo a cor e a melanina ao mesmo tempo. Em trinta, quarenta, cinquenta mil anos, a longa marcha do sapiens sapiens deu isto. E lembro a Ana, na nossa única bicada (a dois) africana, Senegal, ela ia em trabalho, estarrecida: ao fim de meia dúzia de dias, dizia-me: mas eles são tão diferentes fisicamente! Deliciada! E obrigou-me a comer umas coisas à mão em casa de um Abdul simpatiquíssimo, cinco filhos que às tantas estavam todos ao colo da holandesa loira e grande e lher diziam coisas em uolof. disse-me, Vou aprender uolof, há-de ser menos difícil que o português e o Abdul ria como um perdido e jurava que não, português é canja ao pé do uolof, mas a Ana insistia, vou aprender, ai isso é como ginjas, enfim ela não disse como ginjas era o que faltava, mesmo sabendo uns rudimentos de português, português de cama, dizíamos, tontos e felizes, não dá para estas idiomáticas. A Ana nem a morrer aprendeu, aquilo foi tiro e queda, coisa de semanas, puta que pariu isto tudo, um gajo apaixona-se, pensa que afinal a vida pode começar aos trinta e muitos e vem a porra da maligna e zás!, a andar violeta!
Desculpem, mas tudo isto vem de me lembrar que a 25 de Junho, o Hendrik, sogro, enfim quase sogro, porreiro faria anos. Ele que me dizia, a tua casa é aqui, em Haia, perdemos uma filha mas ganhamos um filho, não Hendrik as coisas são mais complicadas, nem eu substituo uma filha, nem esta casa me substitui uma mulher, antes ma faz lembrar e eu, com essa lembrança, não aguento, les portugais ne sont jamais gais, somos uns tristonhos de primeira, se calhar é de propósito, antecipamos estes desastres ou outros. E o pior é que, de quando em quando eles acontecem. No creo en brujas pero que las hay, las hay...
[.....]
Esta crónica, se isso se lhe pode chamar, acaba assim! O autor ia embalado, em quinta, cabelos ao vento num descapotável a desconjuntar-se mas a CG cortou-lhe cerce o voo. Há uma torneira que pinga, avisou, que deita água por fora, agua que estraga os armários da cozinha, temos de ir já ao C*** reclamar, arranjar uma peça nova que isto custou um balúrdio e não tem sequer dois anos de uso. Mas... Nem mas nem meio mas, há um litro de água ou um hectolitro, vá-se lá saber, a tomar liberdades excessivas com o mobiliário. E se não se puder lavar uma xícara na banca não vale a pena cozinhar. E sem cozinhar não se janta. E..., E...
E, ao fim e ao cabo, de que serve lembrar os mortos, nomeá-los, como se isto fosse África e eles fossem os intermediários entre nós e os mundos antigo e futuro a que mais cedo ou mais tarde pertenceremos. Na Europa civilizada, ou quase, a morte esconde-se, tapa-se e esquece-se.
*O (Des)caminho ... é de Cees Nooteboom.
Na gravura: Vista de Delft de Vermeer. Proust achava-o o mais belo quadro do mundo. Nem que seja por usarmos o mesmo primeiro nome, dou-lhe razão.
Estou a ler, melhor a folhear, um par de livros, enfim uma boa dúzia, que até trouxe para a escrivaninha (amo esta palavra: escrivaninha. Sabe-me à compota de laranja amarga da avó Aldina - a Velha Senhora, para os que me lêem há mais tempo - ao barómetro da Antiga Casa Ribeiro que um genial artífice me reparou. E que, de passagem, me deu uma lição comovente do amor pela profissão, do gosto pela coisa bem feita da simplicidade tão Porto de outros tempos, que o senhor, era um senhor!, irradiava.) enquanto vou ouvindo a Ute Lemper cantar. Ó deuses antigos, ó velhos velhíssimos Heinzelmännchen, de que herdamos o nome, protejam esta mulher, mimem-na, acarinhem-na, forneçam-lhe Pfannküchen frescos, tantos quanto ela pedir. Eu devia dizer berliner Pfannküchen para distinguir a simples filhó da vera bola de Berlim. Ai que saudades de um Berlim que já não há, mesmo dividido mas tão cheio de futuro e nós tão novos e tão capazes de espanto! Gosto de pensar que ainda mantenho intacto o sentido do espanto. E a comoção. E a alegria breve e simples, limpa e inicial que se experimenta com um novo livro, Jesus que pilha aqui tenho, livros velhos e novidades, desde “Os Cangaceiros” de Lins do Rego até um divertido (enfim!) “Erase una vez ele amor pêro tuvo que matarlo” de Efraim M. Reyes com passagem pelo “(Des)caminho para Santiago” e livros de poemas de Angel González, António Gamoneda e do José Tolentino de Mendonça que me tem deixado surpreendido. O homem tem força. Muita.
E a Ute Lemper continua, agora com uma canção de Brel, que dá a exacta medida da sua reinterpretação. Melhor dizendo acaba. Salto para um programa onde vejo o Mia Couto. O programa agora é sobre África. Sobre os estereótipos sobre África. De vez em quando encontro pessoas que foram até lá. Para a praia! Não se lhes peça opinião, muito menos descrição. Foram tomar banho. Os pretos são todos iguais. Iguais e pretos. Descobri, sem surpresa, devo dizer, que ninguém vem com qualquer ideia sobre a realidade vista, visitada. Encerrados num resort, num grande hotel, aquilo que os deveria surpreender não surpreende, tanto lhes fazia África ou a Dominicana, desde que haja praia e um moleque para trazer o daiquiri ou whisky, preto ou mulato é igual, um criado é um criado, pode até ser branco mas isso é mais difícil nos trópicos ou adjacências similares.
O Mia, coitado, bem que se esforça mas o peso de uma África tecnicolor, muito Rainha Africana, torna surda toda a gente. E, todavia, ao que parece, viemos todos de lá, em levas sucessivas, ao azar dos caminhos, perdendo a cor e a melanina ao mesmo tempo. Em trinta, quarenta, cinquenta mil anos, a longa marcha do sapiens sapiens deu isto. E lembro a Ana, na nossa única bicada (a dois) africana, Senegal, ela ia em trabalho, estarrecida: ao fim de meia dúzia de dias, dizia-me: mas eles são tão diferentes fisicamente! Deliciada! E obrigou-me a comer umas coisas à mão em casa de um Abdul simpatiquíssimo, cinco filhos que às tantas estavam todos ao colo da holandesa loira e grande e lher diziam coisas em uolof. disse-me, Vou aprender uolof, há-de ser menos difícil que o português e o Abdul ria como um perdido e jurava que não, português é canja ao pé do uolof, mas a Ana insistia, vou aprender, ai isso é como ginjas, enfim ela não disse como ginjas era o que faltava, mesmo sabendo uns rudimentos de português, português de cama, dizíamos, tontos e felizes, não dá para estas idiomáticas. A Ana nem a morrer aprendeu, aquilo foi tiro e queda, coisa de semanas, puta que pariu isto tudo, um gajo apaixona-se, pensa que afinal a vida pode começar aos trinta e muitos e vem a porra da maligna e zás!, a andar violeta!
Desculpem, mas tudo isto vem de me lembrar que a 25 de Junho, o Hendrik, sogro, enfim quase sogro, porreiro faria anos. Ele que me dizia, a tua casa é aqui, em Haia, perdemos uma filha mas ganhamos um filho, não Hendrik as coisas são mais complicadas, nem eu substituo uma filha, nem esta casa me substitui uma mulher, antes ma faz lembrar e eu, com essa lembrança, não aguento, les portugais ne sont jamais gais, somos uns tristonhos de primeira, se calhar é de propósito, antecipamos estes desastres ou outros. E o pior é que, de quando em quando eles acontecem. No creo en brujas pero que las hay, las hay...
[.....]
Esta crónica, se isso se lhe pode chamar, acaba assim! O autor ia embalado, em quinta, cabelos ao vento num descapotável a desconjuntar-se mas a CG cortou-lhe cerce o voo. Há uma torneira que pinga, avisou, que deita água por fora, agua que estraga os armários da cozinha, temos de ir já ao C*** reclamar, arranjar uma peça nova que isto custou um balúrdio e não tem sequer dois anos de uso. Mas... Nem mas nem meio mas, há um litro de água ou um hectolitro, vá-se lá saber, a tomar liberdades excessivas com o mobiliário. E se não se puder lavar uma xícara na banca não vale a pena cozinhar. E sem cozinhar não se janta. E..., E...
E, ao fim e ao cabo, de que serve lembrar os mortos, nomeá-los, como se isto fosse África e eles fossem os intermediários entre nós e os mundos antigo e futuro a que mais cedo ou mais tarde pertenceremos. Na Europa civilizada, ou quase, a morte esconde-se, tapa-se e esquece-se.
*O (Des)caminho ... é de Cees Nooteboom.
Na gravura: Vista de Delft de Vermeer. Proust achava-o o mais belo quadro do mundo. Nem que seja por usarmos o mesmo primeiro nome, dou-lhe razão.
3 comentários:
MCR, a sua vida, mesmo nos momentos mais rotineiros, dava um filme.
Já agora, como arranja tanto tempo para ler?
Estive hoje com a Isabel P., MCR, falei-lhe de si e disse-me que V. é daqueles que já não se fabricam. Ela não sabia que nos conhecíamos.
«(...)Gosto de pensar que ainda mantenho intacto o sentido do espanto. E a comoção. E a alegria breve e simples, limpa e inicial que se experimenta com um novo livro(...)»
Li e reli.
Começa a ser habitual este meu reler as suas 'crónicas', o que é algo pouco habitual em mim, sempre tão ávida de algo novo, diferente. E surpreendo-me... na vontade de re-re-ler.
E entendo... que algo novo e diferente é esta sua escrita, onde se cruzam memórias de afectos e tempos e sons e sabores e... livros.
Sorriso.
...
«(...)A Ana nem a morrer aprendeu, aquilo foi tiro e queda, coisa de semanas, puta que pariu isto tudo, um gajo apaixona-se, pensa que afinal a vida pode começar aos trinta e muitos e vem a porra da maligna e zás!, a andar violeta!»
...
(Espantosa, esta passagem!)
«(...)E, ao fim e ao cabo, de que serve lembrar os mortos, nomeá-los(...)»
Aqui discordo. Porque alguém vive enquanto permanece na nossa memória como afecto.
Abracito
Ni*
(Gostaria de me alongar no comentário, mas sei que não o devo fazer)
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