12 junho 2007

Diário político 53



Intermezzo traulitano

Suponha a leitora que vive na Traulitânia do Norte, pequena e sossegada república crivada de coqueiros mediterrânicos e montanhas verdejantes. Como se sabe a Traulitânia do Norte, chamada pelos seus íncolas, o “torrâozinho de açúcar pilé” é o resultado de uma secular divisão com o seu parceiro maior e mais rico Traulitânia do Sul, a quem os do norte chamam invasora. Enfim mimos que se foram solidificando com o tempo, as guerras e as intrigas diplomáticas.
Ora se a leitora vivesse neste amorável recanto, sólida democracia amparada e sustentada mais pela sua fraqueza do que pela força ou vontade do indigenato local, descobriria, desvanecida, que a classe dirigente do risonho torrão tem singulares hábitos que. não sendo desconhecidos noutras paragens, têm aqui o perfume da regra e não da excepção.
Com este Verão interminável que nunca mais acaba e nem sequer tem o suspense de um incêndio a sério para, sobre ele, se poder, uma vez mais, e sempre com intuitos pouco caridosos, erguer uma repreensão ao governo, entendi respigar dos jornais traulitanos um cacharolete de notícias com que entreter as leitoras e, de passada, azorragar os vícios públicos já que de virtudes nem as privadas se salvam.
E comecemos pelo caso de um ex-grande comis de l’etat que no tempo abençoado das colónias geriu uma, não sei de em proveito da pátria madrasta, da colónia tout-court ou apenas dele e de alguns amigos. A verdade é que, se ainda corre nos tribunais traulitanos alguma acção, não há noticia de mais desenvolvimentos e envolvimentos numa escandaleira gorda de que vários bolsos se terão (largamente) aproveitado. Também não faz falta porquanto, esse ex-várias coisas acaba de se apresentar de corda ao pescoço (isto é apenas uma metáfora) clamando incompreensões estatais e bancárias e numa palavra confessando uma falência vultuosa de quintas, empresas industriais e turísticas. E tudo o vento levou. O vento, o tanas! Só a mala-pata e a reconfirmada incompetência da criatura para outra coisa que não seja estender a mão a quem lha unte. O que eu gostava de falir assim! Infelizmente nem traulitano sou pelo que só me resta admirar a façanha de derreter uns milhões mal ganhos e pelos vistos pior gastos.
Um segundo cavalheiro, também hoje, a contas com os credores, foi, ó ironia da sorte (dele) e azar (nosso) por duas vezes ministro (em pastas ligadas à depauperada economia traulitana) e gestor de variadas e importantes empresas de onde foi saindo por notória incapacidade. Ao que dizem os jornais traulitanos, o cavalheiro está pobre de pedir, não tem casa, cama, cadeira, nada. Tem mulher e filhos, felizmente ricos, que lá o sustentarão, prova que os bons sentimentos ainda não morreram e que o espírito familiar se mantém forte.
Um terceiro espécimen, para variar ainda não faliu. Antes pelo contrario, louvado seja Santa Rita de Cássia, padroeira dos impossíveis e das mulheres maltratadas pelos maridos. Rezam as crónicas traulitanenses, o homem é de uma província longínqua onde ainda se fala assim, que graças ao seu brio, pundonor, qualidades de inteligência conseguiu uma espécie de milagre a la Laffite. Ou seja: de pequeno empregado do banco ascendeu á administração do mesmo. E o caso não é para menos se soubermos que entre a sua entrada na aplicada classe dos empregados de balcão e a sua actual e indiscutível posição, só mediaram uns anos de deputado, uma curta e mal gerida secretaria de estado, interrompida por um desses pequenos grandes escândalos que nunca têm consequências alargadas no tempo. Entrevistada por um jornal de sucesso, a criatura dá como chave do seu meteórico êxito, uma ilimitada confiança em si próprio, um amor desmesurado ao seu ego. Convenhamos que se a receita é essa assim de tão simples, amanhã o mercado explode de tantos e renovados crânios.
Deixou-se para o fim, um dos homens fortes da economia local, apanhado numa trama de inconfidências e má gestão bancária. Aqui houve processo, que a Traulitânia é um Estado a valer. E do processo deduz-se que a criatura prevaricou forte e feio. O que infelizmente não se conseguiu foi uma ou mais vítimas das tramóias postas ao soalheiro. E sem vítimas não há crime, ou lá o que é.
As leitoras que até aqui penosamente chegaram, perguntarão: e que é que nos interessa agora a crónica de um desses países longínquos e miseráveis que de seu só têm emigrantes e praias a baixo custo? Boa pergunta, excelente mesmo mas de resposta fácil. Não há incêndios, não há escândalos, as instituições funcionam, os alunos estudam, os professores professam, o governo governa a todo o vapor, que é que querem que vos conte? Eça, sempre esse homem fatal, à falta de tema, arreava no Pinheiro Chagas ou no bey de Tunes. Como é sabido, o sr Chagas agora é modestamente uma avenida e o bey de Tunes foi substituído por um cavalheiro respeitável chamado Ben Ali. A sua equipa de futebol obteve o 24º lugar no Campeonato do Mundo de futebol. Com tão pouca coisa para ferrar o dente, só me restava a Traulitânia. Do Norte, evidentemente.

nota 1 eu sei que deveria descrever a geografia, os costumes e a história deste país exemplar mas faltou-me pachorra, tempo e imaginação. Alguma vez o farei.
nota 2 tenho a quase certeza de que este texto agora exumado dos escaninhos traiçoeiros do computador onde jazia (bem) esquecido nunca viu a duvidosa luz do dia. Ou já terá saído para vergonha minha e desilusão dos leitores fartos de comida reaquecida?

A ilustração refere um passado não demasiado longínquo da patria traulitana. Foi desta madeira que se fez uma margarida ora na berra.

1 comentário:

Gasolina disse...

Fico à espra das "Crónicas Traulitanas". Traulínicas. Traulanas. Traulitanenses.
Que venham.