Meu Caro José António Barreiros
Em boa verdade eu devia escrever-lhe um cartão pessoal, pessoalíssimo, para sua casa, se possível à mão, ele há velhos princípios de que não se deve abdicar, muito menos quando estão universalmente postergados. Devia, mas, por outro lado, não resisto à pequena alegria de comunicar a um par de leitores, que comecei a ler com grande gozo o livro que V. teve a amabilidade de me oferecer.
É que agora, acabados que foram os jornais onde se podia escrever uma breve nota de leitura, em português vulgar de todos os dias, um livro passa despercebido debaixo da diária avalanche que se publica, da pressa com que se finge estar atento, enfim, vagamente atento, ao que se vai passando pelos diversos campos da criação. Nesse torvelinho perdem-se diariamente livros, discos, exposições para já não falar no teatro a que ninguém vai, enfim quase ninguém.
Por isso, mesmo que esteja apenas perto do meio do livro, atrevo-me a dizer-lhe, e de passada a dizer a alguns leitores, que “contos do desaforo” (ed. presença) só tem contra ele o título, mesmo se eu entenda a razão mais subtil que irónica, do que o levou a desaforar um par de histórias. Isto é uma piada entre juristas ou, pelo menos, entre pessoas que gostam de ler e sabem que as palavras têm peso, têm cor e têm dignidade. Dignidade, insisto, por muito que isto custe a muito boa gente que da dignidade das palavras tem uma outra e mais redutora noção. Parece, a propósito, que o acusam de ser neo-realista e com isso o queiram meter numa espécie de reserva de antigualhas, num ghetto literário mal frequentado ou, pelo menos, passado de moda. Será? Desculpe lá, e desculpem esses apressados, mas o neo-realismo de que o pintam, não consta. Pelo menos até agora. E pelo andar da carruagem não vejo jeitos... E mesmo que assim fosse onde o mal? A menos que alguém pense que o neo-realismo serviu apenas para entoar loas ao defunto Stalin. O que não é verdade, pese embora algum contrabando extra-literário menor que hoje se perpetua noutras latitudes com o mesmíssimo à vontade.
O que se passa é que hoje em dia, por mera ignorância, se chama neo-realismo a tudo o que tenha uma colherinha de café de descrição duma realidade brutal mas comezinha, dessas que nos saltam ao caminho diariamente e que fingimos não ver ou, embotados, não vemos mesmo. É que isto de ter olhos atentos ao diário desaforo em que vivemos, é coisa que parece necessitar de receita médica. Só obrigados é que olhamos em volta. E mesmo assim...
Eu a dizer que ia só escrever uma notinha de leitura e um cartão de agradecimento e isto já está do tamanho da légua da Póvoa. Uma légua, caro JAB, que venho percorrendo sem canseira, lendo de quando em quando um dos pequenos contos que V. reuniu. Como viático para o caminho, a mim, provincial, leitor compulsivo que não confunde amizade pessoal com crítica, esta leitura trouxe-me sem canseira até aqui. Como se o tempo estivesse bom, seco, uma ligeiríssima brisa e essa luz da manhã que convida a andar. A andar e a ler. Haverá melhor maneira de fazer caminho?
Um abraço e que venham mais desaforos.
Em boa verdade eu devia escrever-lhe um cartão pessoal, pessoalíssimo, para sua casa, se possível à mão, ele há velhos princípios de que não se deve abdicar, muito menos quando estão universalmente postergados. Devia, mas, por outro lado, não resisto à pequena alegria de comunicar a um par de leitores, que comecei a ler com grande gozo o livro que V. teve a amabilidade de me oferecer.
É que agora, acabados que foram os jornais onde se podia escrever uma breve nota de leitura, em português vulgar de todos os dias, um livro passa despercebido debaixo da diária avalanche que se publica, da pressa com que se finge estar atento, enfim, vagamente atento, ao que se vai passando pelos diversos campos da criação. Nesse torvelinho perdem-se diariamente livros, discos, exposições para já não falar no teatro a que ninguém vai, enfim quase ninguém.
Por isso, mesmo que esteja apenas perto do meio do livro, atrevo-me a dizer-lhe, e de passada a dizer a alguns leitores, que “contos do desaforo” (ed. presença) só tem contra ele o título, mesmo se eu entenda a razão mais subtil que irónica, do que o levou a desaforar um par de histórias. Isto é uma piada entre juristas ou, pelo menos, entre pessoas que gostam de ler e sabem que as palavras têm peso, têm cor e têm dignidade. Dignidade, insisto, por muito que isto custe a muito boa gente que da dignidade das palavras tem uma outra e mais redutora noção. Parece, a propósito, que o acusam de ser neo-realista e com isso o queiram meter numa espécie de reserva de antigualhas, num ghetto literário mal frequentado ou, pelo menos, passado de moda. Será? Desculpe lá, e desculpem esses apressados, mas o neo-realismo de que o pintam, não consta. Pelo menos até agora. E pelo andar da carruagem não vejo jeitos... E mesmo que assim fosse onde o mal? A menos que alguém pense que o neo-realismo serviu apenas para entoar loas ao defunto Stalin. O que não é verdade, pese embora algum contrabando extra-literário menor que hoje se perpetua noutras latitudes com o mesmíssimo à vontade.
O que se passa é que hoje em dia, por mera ignorância, se chama neo-realismo a tudo o que tenha uma colherinha de café de descrição duma realidade brutal mas comezinha, dessas que nos saltam ao caminho diariamente e que fingimos não ver ou, embotados, não vemos mesmo. É que isto de ter olhos atentos ao diário desaforo em que vivemos, é coisa que parece necessitar de receita médica. Só obrigados é que olhamos em volta. E mesmo assim...
Eu a dizer que ia só escrever uma notinha de leitura e um cartão de agradecimento e isto já está do tamanho da légua da Póvoa. Uma légua, caro JAB, que venho percorrendo sem canseira, lendo de quando em quando um dos pequenos contos que V. reuniu. Como viático para o caminho, a mim, provincial, leitor compulsivo que não confunde amizade pessoal com crítica, esta leitura trouxe-me sem canseira até aqui. Como se o tempo estivesse bom, seco, uma ligeiríssima brisa e essa luz da manhã que convida a andar. A andar e a ler. Haverá melhor maneira de fazer caminho?
Um abraço e que venham mais desaforos.
1 comentário:
«A andar e a ler. Haverá melhor maneira de fazer caminho?»
...
Há na leitura uma forma de energia Universal... um ritual de comunhão de essências, mas também uma viagem ao nosso eu profundo.
Quando lemos, de certa forma, reescrevemos o texto... na interpretação que lhe damos, nas emoções que lhe associamos. Roland Barthes falou-nos disto n'«O Prazer do Texto».... e, ler os contos de José António Barreiros, foi um prazer.
Ler (e reler) José António Barreiros É um prazer.
Há nos 'Contos do Desaforo' o desaforo de nos tocarem naquelas nossas gavetas secretas, forradas a papel de seda.... de várias cores, que fechámos à chave, escondendo-a de seguida de nós mesmos.
Cada personagem, na solidão de um mundo que gira a um ritmo diferente do que lhe é exterior, nos emociona. Pelo modo como nos é 'dita', porque é mais, muito mais do que descrita.
Emocionei-me ao ler estes contos (ainda não os li todos). Não tenho vergonha de o dizer, porque a emoção - se me fragiliza - também me fortalece.
Mais um excelente 'post'!
Sorriso.
Abraço.
Ni*
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