18 junho 2007

missanga a pataco 19


Vai pela casa fora um cheiro a bolos no forno.
A CG tirou-se dos seus cuidados, remexeu livros e livros de receitas até encontrar um velho caderno com uma receita que era a que mais se aproximava de uns bolos caseiros, toscos, cujo sabor, disse-me, estava instalado algures no fim da sua boca desde a sua infância.
Também eu, respondi, também eu tenho para aqui nos gorgomilos uma portas aberta para esses tempos. E vá de recordar sábados felizes, na casa entre Figueira e Buarcos, a cozinha numa azáfama e a minha mãe diante de uma grande taça a misturar a farinha, o açúcar, os ovos e sei lá mais o quê.
E dois ajudantes, subitamente pressurosos, esquecidos da praia (o nosso campo de jogos) ou da mata de Sottomaior mesmo atrás da casa (outro campo de brincadeira...) de olhos como pires, pregados na taça onde tomava cor essa divina massa de bolo. E se a mãe virava costas, e às vezes fazia-o, para falar com a criada ou ir buscar qualquer coisa, eis que uns dedinhos ágeis e ladrões mergulhavam como gaivotas no mar encapelado da massa e pimba, à boca com eles! Ó que gentil maré!
Saiam já daqui seus patifes!, mas a reprimenda vinha doce e risonha e nós igualmente fingidores, recuávamos um passo e depois devagar, devagarinho, milímetro a milímetro íamos encostando os pequenos corpos á mesa grande que eu recordo com um tampo de mármore, seria?, os dedos castamente escondidos, as bocas lambuzadas que com a pressa até as mãos lhes chegavam mal.
De quando em quando saia um tabuleiro cheio de bolos do forno. Aí a nossa tarefa era, depois de recolhidos os bolos, raspar o tabuleiro para voltar a servir. E sobre o lambuzado da massa, à volta da boca juntavam-se migalhas de bolo acabado de fazer. A última fornada a entrar no forno, dava direito a limpar a taça onde a massa fora misturada. Juro que nunca taça alguma ficou tão bem limpa como aquelas dos sábados na casa entre a praia e a mata, em dia de fazer bolos.
A minha mãe já não faz bolos, se bem que uma que outra vez compre alguns vagamente parecidos e os coma. Nós já não rapamos a taça, sequer o tabuleiro recém-saído do forno, rescendente, apetitoso. Mas...por um momento, lembrei-me de ir por ele, correndo o risco de ouvir a CG dizer-me que pareço um miúdo esfaimado e guloso. A idade traz um resquício de dignidade pomposa e vergonha que nos impede de repetir esse gesto tão natural e tão nostálgico de roubar um bolinho acabado de fazer.

O meu irmão entrou às oito no bloco operatório para uma intervenção relativamente benigna. Vai pois para ele esta vaga nota.



7 comentários:

josé disse...

Este merecia entrar nas Lettres de mon moulin, de Daudet.
Ou antes...
Est-ce Pagnol?!

O meu olhar disse...

Boa sorte para o seu irmão, MCR.

Gostei de ler o seu texto. As memórias dos sabores da nossa infância aparecem quando memos se esperam.

o sibilo da serpente disse...

Reabilitação rápida para o mano, MCR.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Um abraço para si e para o seu irmão.

M.C.R. disse...

Obrigado a todos. a coisa parece ter corrido bem mas ainda não falámos.

caro José vous me flattez mon cher! E trop! vraiment trop!
Bem, deixemos o franciu para outras calendas, p. ex. esse belo jantar chez "o meu olhar" e desde já lhe digo: adoro as lettres de mom moulin se bem que não simpatize com o Daudet.quanto ao Pagnol idem aspas aspas mas de comum só temos o nome. (como já acontecia, ahimé!, com o Proust, o Aymé e o Mastroianni. Estou carregado ao peso de Marcelos de tal modo melhores que nem sei como aguento. Agora que um elogio faz bem ao meu ego, ai disso não tenha dúvida. e por isso lhe agradeço.

JSC disse...

Caro MCR
Ultimamente tenho recuperado muitas lembranças pelos cheiros. Também pelos sabores. É que regressei ao lugar de origem ou muito próximo do lugar onde nasci e vivi até aos nove anos. Até por isso está a ser uma experiência interessante.
Uma excelente recuperação para o seu irmão e um abraço a ambos.

Kamikaze (L.P.) disse...

Votos de que esteja tudo a correr bem e um forte abraço.