24 agosto 2007

Au Bonheur des Dames 82


Antes de português, cidadão e antes de cidadão, homem

Um texto meu aqui abaixo (os leitores desculpem mas ainda ninguém me ensinou o truque de escrever aqui, sublinhar e clicando vai-se lá ter direitinho. Estou à espera de uma lição da exma administradora Kamikaze...) suscitou ao caro JSC a ideia de que a minha auto-estima “enquanto português” anda muito por baixo. E parece ainda que me confessei iberista. Vamos por partes:
Eu nasci aqui e, queira, ou não, sou daqui. E em muitas coisas sou-o "sans peur ni reproche” como o cavaleiro Bayard (em francês e tudo!). E uma das mais conhecidas características portuguesas, JSC que me desculpe, é esta: reclamar! Eu reclamo contra tudo o que me não agrada seja portuga ou importado.
E isso aprendi-o com um cavaleiro do tempo do nosso D Afonso III ou IV que numa caçada, apanhou o rei a jeito e cominou-o a mudar de vida senão. O rei façanhudo perguntou: senão o quê? E o conselheiro impávido respondeu: senão, não! Ou seja: em tempos imemoriais havia essa força capaz de desafiar reis. Onde é que ela anda agora, JSC?
Agora, gostaria de esclarecer esses 900 anos de nacionalidade. Eu sei que, nos anos 40 do século passado, houve uma comemorações patuscas, chamadas dos centenários em que se jogava com 1140, 1640 e 1940. Ou seja com a data mais ou menos simbólica da reivindicação de Afonso Henriques e a data da “restauração”. No meio iam 60 anos de Filipes, mas enfim.
Não será o filho de minha mãe que retirará a 1140 o valor de mito que tem. Mas só esse. Até à revolução de 1383-85 a “nação” portuguesa esticava e encolhia consoante se queria, ou pensava poder, abarbatar Castela ou partes dela. D. Dinis, por exemplo, pelo tratado de Alcañices sacou uma bela posta da fronteira central aos vizinhos, para não ir mais longe. Os reinos eram propriedade pessoal do rei e de mais uns quantos e o pópulo que se governasse. De resto, estou em crer que ao mesmo ajuntamento de pés-rapados, o povo português da época, pouco lhe diria um castelhano-leonês, ou um lusitano de pura cepa. Já a partir do século XIV, ou melhor do fim da primeira dinastia, as coisas parecem ser diferentes. Graças aliás à proto-burguesia citadina, ao partido de D.João I, e ao Zé-povinho das cidades que tomaram voz por este. Lá se vão dois bons séculos...
O intermezzo felipista não parece ter suscitado grande protesto: Felipe II de Espanha e Iº de Portugal gabava-se de ser rei por três ponderosas razões: herdara o reino, comprara-o e conquistara-o. Assim mesmo. Herdeiro mais que natural, comprador exímio (quanto portuguesinho valente não recebeu belos dobrões de ouro dos emissários espanhóis) e conquistador dado que teve a pequena maçada de desbaratar a pequena hoste de D António, prior do Crato. E foram sessenta anos de altos e baixos e monarquia dual na forma e, pelo dizer dos nossos nacionalistas mais , de domínio espanhol. Não foi assim, claro mas são eles que insistem pelo que não lhes disputarei essa frouxa caracterização da época histórica.
O senhor duque de Bragança, muito instado, lá se resolveu a lançar o grito do Ipiranga, entusiasmado por sua mulher Dª Luísa de Guzman, da poderosa casa espanhola de Medina Sidónia. Não deixa de ser patusco lembrar que a lenda atribui a esta, aliás excelente, senhora o dito: mais vale ser rainha um dia que duquesa toda a vida! O patriotismo, sempre o patriotismo...
Portugal desembaraçou-se da tutela espanhola para se embaraçar na inglesa mas isso é de somenos. A verdade é que devemos a independência de 1640 (e dos vinte e tal anos seguintes, sempre em guerra, convém recordar) ao facto da Espanha estar mais interessada na Catalunha (coisa que nenhum catalão nos perdoa) e ao apoio das grandes potencias europeias que queriam uma Espanha menos poderosa. Devemo-lo também, evidentemente e sobretudo, aos portugueses que apoiaram o novel rei, por ele se bateram e por Portugal morreram.
Isto quanto à nossa peripécia e a traço muito grosso. A ideia de pátria é uma novidade mesmo no século XVII e se calhar deveríamos andar mesmo um pouco mais para diante para realmente se poder falar disso. Mas aceitemos cum grano salis, como se deve, o esforço afonsino, a astúcia dionisiana, a gesta de Avis (e nunca esqueçamos a tentativa de D João II e a política insistente de casar com herdeiras do trono espanhol, a mais importante das quais morreu juntamente com o infante D Afonso nos campos de Santarém deixando semi-viúva uma menina espanhola que trazia no dote Castela e arredores) e o arranco de 1640-1668, feito por um duque demasiado cauteloso, quase rei à força, que escreveu em espanhol um par de obras notáveis.
Dir-se-á que tudo isto é apesar de tudo um claro sinal de uma “diferença” portuguesa. Será, sem dúvida. Mas não tão enorme que numa outra diferente dobra da história não visse a península unificada por um rei nascido nestas partes e com capital em Lisboa (diz-se que Felipe bem a queria cá e que só optou por Madrid por haver oposição dos portugueses que preferiam a sede do vice-reino longe do olhar desconfiado do espanhol. Negócios!...)
Com isto não há iberismo de coração que resista ao portuguesismo de cabeça. Como eu disse. Não vejo possibilidades de união ibérica mesmo sob a forma republicana. E sob a forma republicana muito me espantaria que o resto da península continuasse junto e unido. E não é pelo irredentismo basco, digo-o já. Muito menos pelos galegos. É a Catalunha, caro JSC, a Catalunha que me parece mais capaz de querer soltar amarras e “libertar-se da sua colónia espanhola” como me dizia um amigo catalão, advogado prestigiado e moderadamente nacionalista. E persisto: quererá alguém em Espanha o torrãozinho de açúcar? Permita-me que desconfie.
Portanto, como bom português, pouco dado a manejar um saco de lacraus, tenho por mim que mais vale estar quieto no meu canto do que ir caçar gambuzinos.
E depois, que diabo, faz algum sentido, em plena União Europeia, falar ainda de um projecto iberista mesmo se louvado por alguns dos melhores espíritos, e só cito Antero, para não maçar?
Agora voltemos à estafada auto-estima de português. Eu tenho por mim que encher o peito de ar e lembrar Aljubarrota, os heróis de 40 e a volta do cabo da Boa Esperança, pode ser peitoral mas não me diz nada que valha para o presente ou para o futuro. Continuando uma tradição antiga de portugueses estrangeirados ou tidos como tal, sobretudo estes, dói-me este país tal qual se mostra diariamente nos jornais, no parlamento e nas ruas cheias de lixo e automóveis mal-estacionados. E disso reclamo, como cidadão primeiro, e homem ainda antes. E não percebo porque é que aqui ao lado há centenas de milhões de euros para a investigação e cá é o que se vê. Não percebo porque é que lá com salários muito mais altos há artigos mais baratos e já nem falo dos automóveis. E poderia fazer uma lista do tamanho da légua da Póvoa com vantagens comparativas.
Já por várias vezes aqui me disseram que ando com a auto-estima em baixo. Quem me conhece sabe que sou de meu natural optimista e risonho. E, mesmo para quem me não conhece, tenho a declarar que isto não é uma questão de auto-estima, nacional, profissional ou cultural. É um olhar desapaixonado sobre o que me rodeia e uma sensação de tempo perdido. Andamos há muito tempo a discutir o estado da nação e quando se arranja uma solução substituímos-lhe logo outra antes da primeira mostrar o que vale. Este país sofre, entre outras, de uma doença fatal: disenteria legislativa. O bota-abaixismo regulamentar desanima o mais valente e transforma cidadãos pacíficos em gente sem fé nem lei. Mas basta uma viração futebolística, um golo milagroso de calcanhar, para subitamente desatar tudo aos hossanas, a acenar bandeiras e bandeirinhas num tumulto que passa mais depressa que o suspiro de uma virgem. E é disso que se alimenta uma classe política (ou parte dela, sejamos comedidos) que parece só andar naquilo na miragem de bodo aos pobres. Apetite satisfeito, ei-los que partem para outra e começam imediatamente a dizer que a nau se afunda. Basta ler os jornais para ver.
Aceite estas linhas pelo seu valor facial. Não há nelas animosidade nem arcas encoiradas. Eu digo o que penso e quando é possível penso o que digo. Um abraço
mcr, cidadão, num estado gordo e um tanto ou quanto arruinado, cosmopolita por gosto, português porque não sabe ver-se de outra maneira.

PS:algum leitor mais expedito poderá ler querendo um texto chamado Aqui estou, aqui fico (Au Bonheur des Dames, 67, 24 de Maio de 2007: basta clicar na etiqueta e aparecem todos os malvados bonheurs. Depois é ir baixando até ao 67. Outra hipótese é clicar no mês de Maio de 07 e procurar. Tá, meus?)

A gravura:num promontório frente às terras iguais mas espanholas, Marvão. Em desertificação acelerada. Entenda-se esta metáfora pelo seu justo valor. E a lembrança da terra como uma homenagem à memória de Aníbal Belo, cidadão e português, colega de Coimbra e amigo até à sua estúpida morte, com quem partilhei longas conversas sobre isto de sermos portugueses...

1 comentário:

JSC disse...

Caro MCR, a única utilidade que vejo, agora, no meu comentário é a de o ter levado a escrever este seu novo e interessante post.

O meu comentário, dubitativo na parte que se refere ao “portuguesismo”, nasceu apenas da pergunta que coloca no seu anterior post: “ E depois há uma pergunta: a Espanha quer-nos? “.

Não vi no que escreveu, nem vejo agora, qualquer posição pró-“iberista” e muito menos “integracionista”.

Portugal é, de facto, a síntese de tudo quanto descreve neste seu post, a que se acrescentam muitos e muitos outros factos, episódios, grandes e pequenas lutas, pequenos detalhes, enfim, uma imensidão de causas e sentimentos, que nos concedem o direito a ter um B.I. português.

Nenhum de nós pode gostar de ver este país sujo e maltratado, nem da política de interesses privatísticos que por cá se tem feito, que nos coloca no topo dos Km de auto-estradas por habitante e na cauda dos vinte e seis no domínio da formação e do desenvolvimento científico.

Têm sido estas as opções políticas dos governos que nos dão todo o direito a reclamar. Lamentável é que o clamor não seja maior.

Um abraço