Senhor doutor, apresento-lhe o novo dono da loja...
Mas então, o quiosque dos jornais e das pequenas coisas que volta e meia fazem falta, um tubo de cola, uma folha de papel de embrulho para presentes, uma fotocópia, enfim essas pequenas coisas de que nunca nos lembramos e que finalmente fazem o nosso quotidiano, este quotidiano que é uma segurança, uma forma insidiosa de esquecer a passagem dos dias, o quiosque dizia eu, muda assim, sem mais nem menos de proprietário?
E logo hoje, no dia em que depois de duas semanas de férias, reabriu, evitando ter de ir sei lá onde procurar coisas, o jornal para não ir mais longe, o jornal, vício diário, vício irritante mas vício mais forte do que o tabaco, já foi tempo, claro, mas agora o jornal continua e o tabaco só dói depois de comer, depois de um café ou nessas horas atrozes, nocturnas em que a aflição e a insónia se dão as mãos e nos expulsam da cama, logo hoje dizia eu, que me vinha já a rir das piadas gastas com que nos brindamos mutuamente a D Rosa (Rosa Maria, senhor doutor, Rosa Maria...) e eu?
Vamos por partes, ninguém tem obrigação de saber que neste bairro, um verdadeiro bairro, coisa que no Porto é quase uma excepção, tão devastada foi a cidade, há um quiosque. E que esse quiosque, aberto há cerca de trinta e dois anos, serve fundamentalmente os habitantes dos dez prédios que constituem com o jardim central uma das mais sucedidas experiencias de urbanismo dos anos 70. Seremos dois mil, dois mil e quinhentos privilegiados, e já nos conhecemos quase todos se bem que estas três décadas tenham deixado marca nos moradores originais mais velhos rapidamente substituídos por famílias que espreitam a oportunidade de comprar apartamentos grandes, espaçosos coisa que também se vai tornando rara graças à gula destemperada dos empreiteiros. Uma baixa num dos serviços da zona mesmo que imediatamente substituída é algo que me impressiona. Esta era já a segunda proprietária, o que em trinta e tal anos não parece excessivo. Só que as pessoas criam laços, hábitos, manias que o vendedor vai conhecendo. Foi assim que consegui ter sempre o Monde das sextas feiras, o ABC e o El Pais dos sábados, as revistas literárias francesas e espanholas, uma outra edição italiana a pontos de ter o cuidado de avisar quando estou fora para poderem vender a algum outro cliente as publicações que não irei buscar. Por isso a notícia da iminente mudança de proprietário do quiosque abala. E depois... e depois, insidiosamente, veio outro sentimento. A dona Rosa Maria lembrou-me que já cá estava há vinte e três anos.
Vinte e três anos! Ainda as árvores eram pequenas, boa parte dos pais que vigiam os seus filhos que brincam no jardim, eram do tamanho destes. Os da minha idade preparam-se para a reforma, contam de netos, o que é bom e de doenças que é mais vulgar.
De repente dou-me conta que vivi aqui metade da minha vida, ou da vida que levo. Um barco encalhado ou nem isso. Um barco encostado que a ferrugem vai ganhando, vai comendo, um barco que já não é uma aventura, um naufrágio uma história de raio verde, de auroras boreais de portos estranhos e perfumados, corto maltese ou sindbad, sequer o capitão achab, isto vai tudo a letra pequena porque estes homens maiores do que a própria sombra ao sol poente, deixaram de ser personagens para passar a arquétipos. Poderia ter antes preferido Jack London, Salgari, Verne ou Stevenson que a história seria a mesma: a história do que não fui nem, ahimé, serei.
Vai-se a D. Rosa (Rosa Maria, senhor doutor...) e nós de repente mais velhos, o Manel, a Irene, o António Carlos, as árvores de repente enormes, as crianças que já o não são e uma boa dose de fantasmas.
Le jour de gloire n’est pás arrivé...
(vista parcial do bairro)
Mas então, o quiosque dos jornais e das pequenas coisas que volta e meia fazem falta, um tubo de cola, uma folha de papel de embrulho para presentes, uma fotocópia, enfim essas pequenas coisas de que nunca nos lembramos e que finalmente fazem o nosso quotidiano, este quotidiano que é uma segurança, uma forma insidiosa de esquecer a passagem dos dias, o quiosque dizia eu, muda assim, sem mais nem menos de proprietário?
E logo hoje, no dia em que depois de duas semanas de férias, reabriu, evitando ter de ir sei lá onde procurar coisas, o jornal para não ir mais longe, o jornal, vício diário, vício irritante mas vício mais forte do que o tabaco, já foi tempo, claro, mas agora o jornal continua e o tabaco só dói depois de comer, depois de um café ou nessas horas atrozes, nocturnas em que a aflição e a insónia se dão as mãos e nos expulsam da cama, logo hoje dizia eu, que me vinha já a rir das piadas gastas com que nos brindamos mutuamente a D Rosa (Rosa Maria, senhor doutor, Rosa Maria...) e eu?
Vamos por partes, ninguém tem obrigação de saber que neste bairro, um verdadeiro bairro, coisa que no Porto é quase uma excepção, tão devastada foi a cidade, há um quiosque. E que esse quiosque, aberto há cerca de trinta e dois anos, serve fundamentalmente os habitantes dos dez prédios que constituem com o jardim central uma das mais sucedidas experiencias de urbanismo dos anos 70. Seremos dois mil, dois mil e quinhentos privilegiados, e já nos conhecemos quase todos se bem que estas três décadas tenham deixado marca nos moradores originais mais velhos rapidamente substituídos por famílias que espreitam a oportunidade de comprar apartamentos grandes, espaçosos coisa que também se vai tornando rara graças à gula destemperada dos empreiteiros. Uma baixa num dos serviços da zona mesmo que imediatamente substituída é algo que me impressiona. Esta era já a segunda proprietária, o que em trinta e tal anos não parece excessivo. Só que as pessoas criam laços, hábitos, manias que o vendedor vai conhecendo. Foi assim que consegui ter sempre o Monde das sextas feiras, o ABC e o El Pais dos sábados, as revistas literárias francesas e espanholas, uma outra edição italiana a pontos de ter o cuidado de avisar quando estou fora para poderem vender a algum outro cliente as publicações que não irei buscar. Por isso a notícia da iminente mudança de proprietário do quiosque abala. E depois... e depois, insidiosamente, veio outro sentimento. A dona Rosa Maria lembrou-me que já cá estava há vinte e três anos.
Vinte e três anos! Ainda as árvores eram pequenas, boa parte dos pais que vigiam os seus filhos que brincam no jardim, eram do tamanho destes. Os da minha idade preparam-se para a reforma, contam de netos, o que é bom e de doenças que é mais vulgar.
De repente dou-me conta que vivi aqui metade da minha vida, ou da vida que levo. Um barco encalhado ou nem isso. Um barco encostado que a ferrugem vai ganhando, vai comendo, um barco que já não é uma aventura, um naufrágio uma história de raio verde, de auroras boreais de portos estranhos e perfumados, corto maltese ou sindbad, sequer o capitão achab, isto vai tudo a letra pequena porque estes homens maiores do que a própria sombra ao sol poente, deixaram de ser personagens para passar a arquétipos. Poderia ter antes preferido Jack London, Salgari, Verne ou Stevenson que a história seria a mesma: a história do que não fui nem, ahimé, serei.
Vai-se a D. Rosa (Rosa Maria, senhor doutor...) e nós de repente mais velhos, o Manel, a Irene, o António Carlos, as árvores de repente enormes, as crianças que já o não são e uma boa dose de fantasmas.
Le jour de gloire n’est pás arrivé...
(vista parcial do bairro)
6 comentários:
Eu também sou assim, MCR, um tipo de rotinas e das coisas simples.
Não tenho, agora, a boa sorte de viver num bairro. Vivo num condomínio fechado onde não há pontos de encontro: o café, o quiosque... Por isso, transferi esses afectos para o centro comercial aqui ao lado, mas é diferente, porque há gente que não tem nada a ver com a partilha dos momento simples.
Esqueci-me de mudar o nome para colocar o comentário. Carteirices :-)
A "zona residencial da Boavista" ou "de william Graham" ou afinal "do Foco" era para ser o primeiro condomínio fechado do Porto. Isto no início de 70. Alguém, a Câmara ou mais acima, não gostou, não quis ou embirrou, E de fechado passou-se a meio fechafo como é agora entra-se pela rua fernando Pessoa e sai-se por Azevedo Coutinho. O cerne do bairro é de facto Eugénio de Castro estruturando todos ou quase todos os prédios, o hotel, o cinema (fechado) as lojas, os restaurantes, os cafés etc... E o jardim, claro.Se fosse hoje, no meio do jardim haveria uma ou duas torres, os apartamentos não chegariam como alguns chegam aos 300 m2, os espaços de garagem seriam menos generosos etc...etc... é por estas e por outras que quem cá mora só sai geralmente para o cemitério. E eu não poderia ter uma casa onde albergasse como acontece 16.000 livros, fora discos , quadros e espaço para tudo...
O "Foco" foi um "must" da cidade e, de certa forma, continua a sê-lo. Ganhou por não se ter transformado num condomínio fechado, solução que nunca ganhou as paixões de arquitectos e planeadores de cidades.
Apesar de não ser assíduo por essas bandas, frequentei os seus bares, fui muitas vezes ao cinema que já fechou e até à igreja, aqui em ocasiões menos felizes. Agora parece que o hotel Tivoli encerrou para obras durante dois anos.
Mas haverá quem continue a comprar jornais e revistas por ali...por muitos e bons anos.
Afinal andamos todos pelos mesmos lados. Também frequentei aqueles espaços. Primeiro, Club 21 depois os do outro lado. Creio que foi num destes que assisti a uma das primeiras aparições públicas do Pinho Vargas. Nesses tempos o Foco a par da Praça Velasques era a modernidade urbanística no Porto. Mas continuam a ser duas excelentes zonas de referência da cidade.
Oh Tio! Não é que continuo a ler-te com prazer?
Um abraço
ZM
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