05 setembro 2007

Au Bonheur des Dames 83 - suplemento




Intermezzo na esplanada


Estou sentado na esplanada aqui mesmo a dois passos de casa. É uma esplanada simpática sobre o jardim onde um perdigueiro doido e um labrador preto e anafado travam conhecimento. Abanam as respectivas caudas, vê-se que têm real prazer neste encontro, ao fim e ao cabo são vizinhos, só que nunca se tinham cruzado antes. Agora o perdigueiro vem cumprimentar-me, também nos conhecemos, é o que é, volta e meia pára junto da mesa onde estou e eu faço-lhe uma festa, e isso bastou para que ele sempre que me vê me vir cumprimentar. Isso e, claro, algum pedaço de sanduíche que às vezes lhe dou. Os perdigueiros, mesmo de casas ricas, gostam de pão com queijo. Não é fome mas apenas apetite... E memória.
Como todas as esplanadas, esta tem os seus habitués. A começar pela “hospedeira”, uma vizinha que é certa todos os dias e a várias horas, pelo menos de manhã. E foi assim crismada porque, no dizer de uma antiga conhecida, ela veste-se como uma hospedeira de bordo. Só as mulheres são capazes destas maldades, mas de facto, sempre que a vejo, lembro-me de antigas hospedeiras em aviões ainda mais antigos onde durante dois dias se fazia a travessia Portugal-Moçambique. E que viagens! O Super-constelation voava a uma altura conveniente e logo que se entrava em África, e era dia, podíamos ver a paisagem lá em baixo. Os caminhos na savana, as povoações, a bicheza quando por sorte se passava pelas grandes manadas, os rios, ah a entrada do Zaire no mar, uma mancha escura na água azul, quilómetros e quilómetros de águas que se não misturavam...
Mas deixemos essa memória da juventude, antes que venha alguém tresler esta página e pensar que se tem saudades do colonialismo, ele há cada um, esta merece ser contada: uma vez publiquei aqui um texto onde falava da África que conheci. Alguém, muito tonto, entendeu que aquilo era um convite à reconquista das colónias ou uma saudade dos “bons velhos tempos” em que o chefe do posto mandava os cipaios arriar forte e feio nos indígenas relapsos que não tinham cuidado bem as machambas de algodão. E o kuekuero fervia na pele dos desgraçados, enquanto Sexa, o chefe do posto, bebia o seu whisky ou o seu chá à sombra e ia despachando outros assuntos correntes. Isto nos anos tardios e já perto do fim da ilusão colonial. Convirá dizer que esse “império” com que se babam alguns saudosos, durou escassos anos. Foi a partir da segunda metade do século XIX que as expedições militares (centenas de expedições para só referir as três colónias na terra firme africana) foram pouco a pouco quebrando a resistência dos povos que achavam um abuso pagar imposto e ainda por cima perder as melhores terras para já não falar do trabalho forçado, e da deslocação maciça de trabalhadores para outras zonas do país ou para S. Tomé. Junte-se a corveia de carregadores (a tropa ao avançar para o interior precisava de centenas de carregadores para transportar a impedimenta, as tendas, as munições e o alimento) e outras miudezas de mau gosto para se perceber a má vontade, e a preguiça!, dos “indigenas” fartamente glosada pelos arautos da missão civilizadora de Portugal.
Feito este intervalo neo-colonialista, regressemos ao jardim onde dois grandes canteiros de gladíolos e de agapantos dão cor. Os cães já se foram mas agora há uma série de pequenos galfarros cuidadosamente vigiados por um par de progenitores voluntários que correm sem se cansar, as crianças são incansáveis, valha-as Deus. Também agora, com isto de viver em andares onde é que hão-de dar largas à sua feliz vitalidade? Ao meu lado alguém comenta que até se cansa só de as ver. Mas faz este reparo com um sorriso, uma longínqua infância a espreitar por trás dos olhos claros e cansados.
Numa mesa mais longe, há um conspícuo cavalheiro, freguês certo desde há uns tempos com quem troquei umas palavras em Matosinhos durante as jornadas da “literatura em viagem”. Nessa altura ele perguntou-me se eu vivia por aqui porque me via todos os dias. Tem graça: eu nunca o tinha visto! Prova provada que quando aqui estou ferrado num livro ou no jornal, o mundo pode desabar à minha volta. Agora, quando chego, certifico-me de que está, cumprimento, baixo o periscópio e afundo-me na leitura. A menos que um cão ou duas crianças me façam o favor de me acordar para poder reparar no dia macio e quente, nos canteiros gloriosos do jardim e no cheiro antigo e renovado do verão.
Como se o miúdo que corria desabaladamente na praia de Buarcos me estivesse a fazer negaças do fundo de quem sou convidando-me mais uma vez para ir até ao mar “picar umas carreiras”...

na gravura: Claude Monet

3 comentários:

O meu olhar disse...

Olhe MCR, a forma como descreve o que o rodeava na esplanada é preciosa. Consegui imaginar a cena como se estivesse lá.

Silvia Chueire disse...

O meu olhar tem razão, MCR, é preciosa esta crônica. : )

Abraços,

Silvia

M.C.R. disse...

grato...muito grato.