Morreu esta noite. O corpo já não dava mais, os anos também já não eram poucos, os amigos quase todos desaparecidos, restavam, alguns com a idade das filhas mais velhas. Eu, por exemplo.
Raras vezes, enfim algumas, senti uma morte como se de um pai (ou um irmão) se tratasse. O tio Marcos, o Zé Valente, o Fernando Assis Pacheco, o Jorge Delgado, o António Abreu ou o Luís Neves. Se a comoção não me perturbasse, lembrar-me-ia de mais alguns, provavelmente. Mas a emoção, as lágrimas e uma súbita sensação de frio intenso, embotam-me a memória e a razão.
Esperava esta morte. Há seis meses, talvez mais. Nas últimas vezes que estive com o Rui, a morte espreitava já. Um cansaço, uma curiosidade já amortecida, algum desprendimento, sinais violentos que nem a mais optimista das amizades consegue não ver.
Rui Feijó é praticamente o último de uma geração. Da geração que viu nascer o “neo-realismo”, que fez de cabo a rabo a resistência ao Estado Novo, que nunca cedeu, nunca parou de lutar e que, já devastada conseguiu chegar a Abril de 74. Para trás ficavam as militâncias partidárias, as conspirações (o Rui esteve na rede Shell), as aventuras literárias (a “Vértice” de que ele foi um dos proprietários -!!!-; as “Antologias do conto moderno” de que ele obviamente foi um dos animadores; a colaboração constante – e constantemente peada – em jornais e revistas; a intervenção critica e literária – foi ainda ele que me honrou apresentando um pequeno livro que escrevi e um editor generoso publicou) e a defesa obstinada dos perseguidos políticos. Na sua casa estiveram escondidos e protegidos muitos refugiados (por todos o Manuel Alegre), foi um dos membros mais activos da “Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos” (e também por isso lhe sou devedor porquanto foi esta Comissão que imediatamente divulgou a minha penúltima prisão e alguns dos que me lêem sabem o que isso significa(va) para quem era preso quase subrepticiamente no meio do medo e da indiferença. Os presos além de presos não existiam na opinião pública, nos jornais sequer, muitas vezes, nos amigos).
Poucos dias antes do 25 de Abril, contactei-o para me ajudar numa missão relativamente arriscada. Tratava-se de constituir uma frota de viaturas para transportar os militares de Abril para a fronteira no caso de alguma coisa correr mal. O Rui já passara a barreira dos cinquenta mas nem sequer hesitou. “Às ordens meu capitão!”, disse com um sorriso de orelha a orelha. E durante esses dias de esperança e febre parecia o mais novo de nós. E no dia 25, logo pela madrugada, lá estava ele fresco como uma rosa, pronto para o que desse e viesse. Felizmente, os nossos préstimos não foram necessários de modo que a aventura revolucionária se esfumou numa longa peregrinação pela cidade do Porto, numa madrugada carregada de promessas.
Homem de uma cultura absolutamente invulgar, deixou uma marca forte em quantos o conheceram. Bastará ler as memorias de vários intelectuais da mesma geração para ver aparecer sempre com um elogio uma menção a Rui Feijó. Elogiosa, obviamente. Por sobre ser um homem de bem, foi um homem do seu tempo. Um homem sábio, humilde, generoso e um cidadão exemplar.
Possamos ter na hora última alguém que de nós diga o mesmo.
* Rui Feijó foi presidente da Câmara de Lousada (logo depois do 25 de Abril), deputado pelo Partido Socialista à Assembleia Constituinte, Delegado Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura. Pertenceu ao MASP e esteve nos Estados Gerais como membro do Conselho Coordenador de Cultura.
** O título geral deste post "estes dias..." tem origem num livro de Pierre Van Paassen. O Rui era um grande admirador deste autor. Ora aqui está uma oportunidade de o homenagear.
Raras vezes, enfim algumas, senti uma morte como se de um pai (ou um irmão) se tratasse. O tio Marcos, o Zé Valente, o Fernando Assis Pacheco, o Jorge Delgado, o António Abreu ou o Luís Neves. Se a comoção não me perturbasse, lembrar-me-ia de mais alguns, provavelmente. Mas a emoção, as lágrimas e uma súbita sensação de frio intenso, embotam-me a memória e a razão.
Esperava esta morte. Há seis meses, talvez mais. Nas últimas vezes que estive com o Rui, a morte espreitava já. Um cansaço, uma curiosidade já amortecida, algum desprendimento, sinais violentos que nem a mais optimista das amizades consegue não ver.
Rui Feijó é praticamente o último de uma geração. Da geração que viu nascer o “neo-realismo”, que fez de cabo a rabo a resistência ao Estado Novo, que nunca cedeu, nunca parou de lutar e que, já devastada conseguiu chegar a Abril de 74. Para trás ficavam as militâncias partidárias, as conspirações (o Rui esteve na rede Shell), as aventuras literárias (a “Vértice” de que ele foi um dos proprietários -!!!-; as “Antologias do conto moderno” de que ele obviamente foi um dos animadores; a colaboração constante – e constantemente peada – em jornais e revistas; a intervenção critica e literária – foi ainda ele que me honrou apresentando um pequeno livro que escrevi e um editor generoso publicou) e a defesa obstinada dos perseguidos políticos. Na sua casa estiveram escondidos e protegidos muitos refugiados (por todos o Manuel Alegre), foi um dos membros mais activos da “Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos” (e também por isso lhe sou devedor porquanto foi esta Comissão que imediatamente divulgou a minha penúltima prisão e alguns dos que me lêem sabem o que isso significa(va) para quem era preso quase subrepticiamente no meio do medo e da indiferença. Os presos além de presos não existiam na opinião pública, nos jornais sequer, muitas vezes, nos amigos).
Poucos dias antes do 25 de Abril, contactei-o para me ajudar numa missão relativamente arriscada. Tratava-se de constituir uma frota de viaturas para transportar os militares de Abril para a fronteira no caso de alguma coisa correr mal. O Rui já passara a barreira dos cinquenta mas nem sequer hesitou. “Às ordens meu capitão!”, disse com um sorriso de orelha a orelha. E durante esses dias de esperança e febre parecia o mais novo de nós. E no dia 25, logo pela madrugada, lá estava ele fresco como uma rosa, pronto para o que desse e viesse. Felizmente, os nossos préstimos não foram necessários de modo que a aventura revolucionária se esfumou numa longa peregrinação pela cidade do Porto, numa madrugada carregada de promessas.
Homem de uma cultura absolutamente invulgar, deixou uma marca forte em quantos o conheceram. Bastará ler as memorias de vários intelectuais da mesma geração para ver aparecer sempre com um elogio uma menção a Rui Feijó. Elogiosa, obviamente. Por sobre ser um homem de bem, foi um homem do seu tempo. Um homem sábio, humilde, generoso e um cidadão exemplar.
Possamos ter na hora última alguém que de nós diga o mesmo.
* Rui Feijó foi presidente da Câmara de Lousada (logo depois do 25 de Abril), deputado pelo Partido Socialista à Assembleia Constituinte, Delegado Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura. Pertenceu ao MASP e esteve nos Estados Gerais como membro do Conselho Coordenador de Cultura.
** O título geral deste post "estes dias..." tem origem num livro de Pierre Van Paassen. O Rui era um grande admirador deste autor. Ora aqui está uma oportunidade de o homenagear.
6 comentários:
A Maria João Delgado mandou-me a seguinte mensagem que reproduzo tal e qual:
"Palavras certas! Já foram todos, scho eu, os psis e mães do nosso núcleo duro, os nomeados e mais a Alcinda,a Judite, o Joaquim, o Pedro Martins. foi bom viver com eles."
comentário:
Nem mais, Joanico!foi bom viver com eles. vivamos agora com o seu exemplo.
À cautela identifico: Alcinda Delgado, sogra inesquecível e sempre lembrada. Mulher de uma cana, corajosa, teimosa, jogadora de tudo o que fosse possível jogar. Esteve sempre na trincheira e foi membro do Socorro Vermelho quando isso significava muito e exigia coragem. Muita.
Judite Mendes de Abreu (já aqui referida) bastante parecida com a anterior, valha-me Deus!, foi presidente das câmaras da Figueira e Coimbra depois do 25 A e membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos desde o início até 1974.
Joaquim Namorado, dirigente estudantil universitário na década de 30, membro do PCP, director da Vértice, poeta e professor universitário. Para honra sua desobedeceu ao "partido" quando se desencadeou a caça aos heterodoxos Lopes Graça e Mário Dionísio: com Luís de Albuquerque, R. Feijó e João José Cochofel defendeu-os, acolheu-os na revista e manteve-os como colaboradores.
Pedro Martins, dirigente e clandestino do PC nos anos 40 longamente preso deixou entre os que o conheciam um rasto de ternura. (Não o conheci mas ouvi falar dele vezes sem conta).
Se me alonguei neste comentário a um comentário foi apenas porque começa a ser necessário lutar contra o esquecimento e contra a ignorância. Os filhos de Salazar andam por aí a tentar limpar a merda que lhes é congénita. Alto e pára o baile!
Obrigado, Maria João. Um beijo!
No texto da João leia-se pais onde está psis e acho onde se escreve scho.
Azares da transcrição (e da comoção).
Só soube, agora. Conheci-o. Era um homem cordial e sábio. O PS está mais vazio!
Lamento profundamente.
querido marcelo
não te agradeço por teres escrito sobre o meu pai. era o que faltava, a amizade não se agradece. mas aprecia-se. Fizeste o rápido comentário necessário, embrulhaste o Pai naquele pacote dos nosso "maravilhosos" que nos têm vindo a deixar nestas primaveras. Faltou-te só falar de mais alguns que eu gostaria de ver junto do meu querido, e que são o Manel Silva Araújo e o António Rocha Melo. Fica assim reconstituído o grupo daqueles que também e muito nos ajudaram a ser o que somos.
beijo
Um amigo que está longe mandou-me esta mensagem reagindo ao teu texto:
“Há dias, alguém escrevia numa crónica daí que muitas vezes, quando parávamos por instantes na azáfama dos dias, não gostávamos da imagem que essa paragem nos devolvia - a imagem do que não soubéramos ser, da vida perdida no meio das mil coisas que fizéramos.
Não foi certamente o caso do teu pai, que não conheci, mas de quem ouvi falar por familiares que também andaram pelos círculos da oposição no Porto e lhe admiravam o exemplo.
Foi, tanto quanto sei, uma vida a lutar por quanto lhe pareceu a liberdade e a justiça, talvez por “uma fiel dedicação à honra de estar vivo”, como escreveu Sena num poema quem em tempos trazia comigo.
E ninguém melhor que os amigos para o lembrarem e manterem viva a sua memória e exemplo.”
Resposta à Luísa Feijó
Sabendo embora que o teu reparo não se trata de uma censura sempre direi que do Manuel Silva Araújo aqui falei no "Au Bonheur... nº23 (Voltaire o gato).
De António Rocha Melo não falei porque de facto quase não o conhecia. Havemos de ter trocado, por todo, quatro frases banais o que não chega para escrever sobre ninguém, como calcularás. ARM não entra, pois, por mero acaso, nesse meu panteão em que entendi meter o Rui Feijó.
Terei provavelmente perdido muito por o não conhecer mas tenho por norma falar apenas do que sei, do que conheço e até, quase sempre, do que amo. E nada disto ocorria com a figura, decerto respeitabilissima, de ARM.
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