22 maio 2008

Estes dias que passam, 111


Torcato Sepúlveda

Não é fácil definirmos alguém com quem raramente estamos como um amigo. Na verdade, o próprio facto de se somarem mais ausências do que presenças, inviabiliza, ou, pelo menos, atenua, essa amizade que tantos proclamam e que consegue até nutrir-se de distância e silêncio.
Abro porém meia excepção para o Torcato. Não éramos amigos mas apenas conhecidos desde Coimbra. Mais precisamente desde 1969. Nessa altura o Torcato era m miúdo reguila com um vozeirão. Os meus amigos achavam-no insuportável e classificavam-no sumariamente : um “contesta”. Eles, muito mais velhos, mais experientes, condenavam sem grande esforço qualquer um que pusesse em causa a sua autoridade. Ou que os pusesse em causa, simplesmente. A história deu-lhes razão. Uma luta estudantil não era pêra doce. E naquele tempo ainda menos. Havia que saber parar. Havia que conciliar. O Torcato, que devia ser caloiro, não estava pelos ajustes. Falava entusiasmado, aos arranques, com o corpo todo e, por ele, não era possível outra solução que não passasse pelo esmagamento absoluto do adversário.
Depois disso encontrámo-nos duas vezes. No lançamento de um romance do Assis Pacheco e por ocasião de um “brain storming” patusco que um Secretario de Estado da Cultura patusco e ignorante realizou com todos os seus directores e sub-directores gerais e na presença da imprensa. Duas vezes em quase quarenta anos. Em ambas, porém, estivemos à conversa uma tarde inteira. Horas e horas a falar de algo que nos interessava, livros sobretudo. E em ambas as ocasiões despedimo-nos jurando que depressa nos voltaríamos a ver para discutir mais uns pontos daquela nossa agenda inesgotável.
Devo corrigir o que acima disse. O Torcato, muito certamente, nada sabia de mim, mas eu lia-o com constância. E com respeito. E com carinho. Foi responsabilidade dele o melhor suplemento cultural que o “Público” jamais teve. E logo que ele saiu, aquilo foi caindo, caindo, até se chegar a este inóspito pedaço de papel onde tudo desde o espectáculo mais pimba até umas vagas notas de leitura se mistura, se acavala, se repele. A ânsia de ganhar dinheiro vai de par com o desprezo pela cultura e pelos leitores. Às vezes pergunto-me se os responsáveis do Público lêem o El Pais, o ABC ou o Le Monde. E se, lendo os seus suplementos literários ou culturais, se envergonham. E no caso de eventualmente se sentirem mal, por que é que não se perguntam: o que é que o Torcato diria “disto”?
E antecipo uma resposta. À maneira de Jarry, melhor dizendo, Ubu: Merdre!

* na gravura: Ubu por Max Ernst.

1 comentário:

josé disse...

O melhor suplemento cultural que conheço, em jornais, é o do La Repubblica.

Todos os dias, tem interesse.

Ao Público, bastar-lhes-ia traduzir.
Ou copiar que não me importava nada.