01 maio 2008

Maio, maduro Maio 2


Pálida Mãe

Deutschland, bleiches Mutter”: nunca o verso de Brecht foi tão verdadeiro como neste caso. Porque agora estamos diante dos filhos da guerra e do nazismo. Os filhos que, como Rudi Dutschke, não se sentiam bem na chamada “Republica Democrática” e achavam que a República Federal estava vendida aos “Konzern”, à América e à burguesia.
São estes órfãos que se engajam em todos os combates. Assumiram ingenuamente as culpas de pais e avós e sentem ser seu dever remir em pouco tempo os longos anos do terceiro Reich e da guerra. E causas não lhes faltam: desde o apoio aos refugiados iranianos e contra o Xá, às campanhas de solidariedade com o Vietnam. Curiosamente o principal bastião da juventude combatente é Berlim.
Berlim nos late sixties e depois é um pequeno oásis. Temendo a fuga de habitantes, dado a cidade ser uma ilha no meio da RDA, o governo federal concede subsídios, anima empregos, facilita a vida na cidade cercada. De todo o modo é a predominância de pessoas idosas e de jovens. E entre estes numerosos estrangeiros, bolseiros, refugiados, gente que começa a criar as redes de alternativos, os primeiros ambientalistas, enfim boa parte do que mais tarde constituirá o melhor da herança destes anos de luta.
Porque de luta se trata. Contra o regime do Xá da Pérsia, o protegido dos americanos, o homem cujas mãos estão, no dizer de muitos, tintas do sangue de Mossadegh, para já não falar das vítimas da SAVAK a famosa polícia secreta que persegue com a mesma constância islamistas, comunistas ou simples democratas. Será numa manifestação (Junho de 1967) contra o regime persa que um polícia assassinará Benno Ohnesorg. E é a partir desse momento que Berlin entra no ciclo das grandes manifestações.
(curiosamente, tenho desde há dias, uma carta minha enviada a meus pais em Dezembro de 71 e datada de Berlin: aí lhes falo da morte de Georg von Rauch, um militante da RAF (Rote Armee Fraktion) quase a nossa vista. As manifestações que se seguiram terão sido o último suspiro deste ciclo iniciado anos antes. A deriva tragicamente terrorista deste grupo, que não obstante teve mais apoios do que seria de esperar, é também uma das heranças do Maio alemão)
A segunda frente de luta dos jovens alemães é mais grave e porventura mais séria: o silêncio dos pais sobre os anos do nazismo. E convenhamos que alguma (muita) razão teriam. E dos dois lados do muro. Quer Adenauer quer Ulbricht acharam melhor passar uma esponja sobre os milhões de “pequenos nazis” (a expressão é originária da RDA), sobre a sua responsabilidade histórica, os crimes, os silêncios e as cumplicidades.
A guerra fria ajudou, obviamente. E é aí, ou é também aí que entronca o anti-americanismo radical dos estudantes alemães. Convenhamos que é uma ironia o facto de o auge da contestação se localizar na cidade que só o poderio americano defendia dos russos e dos seus aliados alemães.
Perguntar-se-á qual o papel da RDA, do comunismo à alemã, nisto tudo. Independentemente da alegação de que alguns refugiados da RAF se terem acolhido nela, das ligações entre a RAF e alguns grupos palestinianos, destes por sua vez terem passagem franca pelo leste europeu, conviria talvez recordar que para a grande maioria dos esquerdistas alemães a RDA era a pura incarnação da degenerescência burocrática e penitenciária do ideal comunista. Os bisnetos de Rosa Luxemburg e de Karl Liebknecht, desconfiavam do desvio soviético, dos seus aplicados discípulos orientais, liam os heterodoxos e juravam por Adorno e Marcuse. É provável que a famosa teoria dutschkiana da acção exemplar e da provocação à polícia fossem consideradas pequeno-burguesas ou, pior ainda, doenças infantis e esquerdistas pelos ideólogos do SED, o extraordinário Partido Socialista Unificado, pseudónimo do comunismo alemão oriental. Dutschke propõe “desmascarar” os poderes instituídos obrigando-os a defender-se violentamente da ofensiva das minorias conscientes que, todavia, não restringem o seu campo de actuação ao país mas antes estão em consonância com os movimentos revolucionários de todo o mundo e sobretudo com os que, de algum modo, escapam à lógica soviética. Daí o apoio ao Che, ao Viet-Cong e às organizações contestarias emergentes um pouco por toda a parte.
A reacção é, evidentemente, violenta. Em Berlin, e no resto da Alemanha, a imprensa do grupo Springer ataca diariamente e com inusitada linguagem a minoria estudantil liderada por Rudi o Vermelho. O SPD tenta meter na ordem a sua organização de juventudes, o Sozialisticher Deutscher Studentenbund (S.D.S.) de que Dutschke é um dos líderes. A polícia vai metodicamente fichando os militantes e apoia sem reservas as “provocações” que lhes são feitas na Universidade Livre de Berlin. E o que tinha de acontecer, acontece: a 11 de Abril de 1968 (repare-se na data) dispara três tiros sobre Rudi em plena rua. E é, de certo modo, o fim brutal de uma carreira: Dutschke sobreviverá 11 anos ao atentado mas as sequelas do atentado afastá-lo-ão da política e da Alemanha. Aliás a sua morte acidental é ainda resultado do atentado.
Sob certo prisma, a breve carreira de Dutschke e o seu desaparecimento abriram caminho à radicalidade absoluta da RAF. Não me repugna acreditar que esta pequena organização viu esse atentado como prova absoluta da impossibilidade da luta pacífica ou, pelo menos, da luta não terrorista.
Não se pretende aqui desculpar a deriva terrorista (e finalmente inócua do ponto de vista revolucionário) dos Baader, Meinhof, Esslin et alia. Entre 1972 e 1988 mataram gente e morreram (suicidaram-se, ou foram suicidados) quase todos os seus membros. Nos dois últimos anos terão sido libertados condicionalmente os últimos elementos ainda vivos da organização. A sua pegada na História (com H ou h) foi mínima se é que já não se apagou. A reunificação alemã enterrou a RAF sob os destroços do muro, das fábricas abandonadas, e das ilusões perdidas. |Não me custa dizer que ainda bem.

* o cartaz (de que tive um exemplar!, que saudades...) é do SDS e significa em livre tradução: "Todos falam do tempo. Nós não."

** De Rudi Dutschke pode ler-se "Écrits Politiques", Christian Bourgois ed., Paris, 1968

1 comentário:

josé disse...

Os países que tiveram terrorismo urbano, nos anos setenta, são aqueles que foram dominados pelo fascismo ( verdadeiro), na primeira metade do século: Alemanha, Itália e Japão. Ou seja, os países do Eixo.