04 maio 2008

Maio, maduro Maio 3


Ao longo destes textos tentarei dar um testemunho. Porque de certo modo vivi Maio. Intensamente. Cá e nos locais onde ele foi mais visível. Boa parte do que hoje sou, devo-o a esses últimos anos da minha vida universitária. Boa parte do meu empenhamento político posterior esteve marcada por Maio. Pouco importa o que isso queira exactamente dizer. Basta ler as revistas, os jornais, os livros que de repente voltam a inundar as bancas para perceber que o fenómeno não é unívoco e que, como num outro antigo texto disse (e tê-lo-ei aqui já citado) Maio pode ser (deve ser) encarado como o fim de uma época mas também como o início de outra. Em segundo lugar, o que se convencionou chamar Maio não se reconduz a Paris (de resto era exactamente isso o que se dizia lá, o que se sentia lá. Aquilo não era uma questão franco-francesa e o General de Gaule bem o compreendeu). É duvidoso que sem outros exemplos (os seat-in e os teach-in dos campus americanos, por exemplo) os acontecimentos se tivessem desenrolado como se desenrolaram. Parte dos militantes mais politizados estava ao corrente do que se passava na Alemanha, na Itália ou na Espanha (Portugal era mais ignorado, pesem embora os esforços dos emigrados portugueses que já não eram assim tão poucos).
E cá, apesar da censura, dos bloqueios ideológicos (que os havia...) também não eram desconhecidos muitos dos temas que afloraram na discussão em França. O movimento estudantil português estava umbilicalmente ligado ao francês. As famosas teses de Grenoble (..o estudante é um jovem trabalhador intelectual...) eram conhecidas, por vezes glosadas. A França era a principal fornecedora de literatura política, o francês ainda era a língua estrangeira mais falada por cá. E havia os laços criados pela crescente emigração económica e política para lá.
Dito isto, que é mais importante do que se julga (ou do que transparece em certas opiniões de que tenho tido conhecimento), pareceu-me interessante intercalar nestes textos algumas notas de carácter pessoal. Aliás, nos dois posts anteriores apenas citei livros que na altura li (exactamente no ano de 68, para ser mais exacto) e boa parte do que deixei como conclusão já fazia parte duma apreciação que, não sendo generalizada, se ia fazendo em Coimbra e, provavelmente nas outras duas cidades universitárias.
Resolvi, pois, recorrer ao meu catálogo de livros comprados (que mantenho desde 1959!!!) e, vendo que livros comprei em 68, tentar traçar um retrato, não de uma geração (não pretendo tanto) mas pelo menos de um militante estudantil que eventualmente se assemelha a mais alguns.
Em 68, andava muito interessado em estudar o colonialismo (razões não me faltavam...) e com um pouco de sorte perceber melhor a história e as culturas africanas bem como a questão negra americana. Hamidou Kane,l’aventure ambigue”; Ruytinx, “la morale bantoue”; J Jahn, Muntu, las culturas neo-africanas”, Césaire, “Une saison au Congo, R. Wright, “Écoute, homme blanc"; Malcolm X. "le pouvoir noir"; e um controverso Sartre, “Colonialismo y neo-colonialismo", uma edição argentina das “Situations V” milagrosamente encontrada numa livraria de Coimbra. Anos antes tinha lido “Reflexões sobre o racismo” que agrupavam o belíssimo “Orfeu Negro” e “A Questão Judaica” e devo confessar que, neste campo, ainda hoje me sinto tributário do pensamento de Sartre.
Também estava a começar a ler muitos autores ditos clássicos que chegavam através das colecções de bolso francesas (Garnier-Flamarion e 10-18, fundamentalmente): Rabelais, Voltaire, Toepffer, Tillier, Casanova; teatro (Beckett, Hochutt, - “Soldats” – Arthaud, O’Casey, Stanislavsky), história, além de, obviamente, política: algum Marx mais duro, Sombart, demasiado Mao, Bukarine, Friedman, Rosa Luxemburgo – “Marxisme contre dictature” -, Henry Lefebvre, K. Korsch e, muito na hora, Marcuse. De facto aparecera uma edição brasileira do “Homem Unidemensional” sob o título pavoroso de “Ideologia da sociedade Industrial” que aliás li depois do “La fin de l’utopie”, Dutschke, já citado em anterior texto, Cohn Bendit, “le gauchisme”; o “Discours de la guerre” de Glucksman e algo que na altura me impressionou bastante: “Traité de savoir vivre a l’usage des jeunes generations” de Vaneighen.
Deixei para um apartado especial desta lista o inevitável Althusser e os “cahiers marxistes-leninistes” comprados quase sempre numa livraria da rua Git-le-Coeur, hoje dedicada à BD para adultos! Era a China, claro, o farol iluminado pelos livros de Edgar Snow e de L. Bianco, lidos também neste ano. A ironia da história, se de ironia se trata, é que estas últimas leituras foram já defensivas: o milagre chinês começava a parecer-me suspeito e o “petit livre rouge” pareceu-me intragável. Pior só uma senhora que anos mais tarde foi muito popular entre os aprendizes de revolucionário: Marta Harneker! Dela li, na melhor das hipóteses um cento de páginas, e ainda hoje, tantos anos depois, me arrependo. Fica para desconto dos meus muitos pecados!
Hoje em dia, parece fácil (e soa a desculpa...) dizer isto. Todavia, em minha defesa, sempre acrescentarei que na mesma altura li Caillois, Bataille, um largo grupo de surrealistas, Queneau (a Sally Mara), Jarry (Tout Ubu), Lautréamont, Borges, Herberto Hélder (de que fui e sou fanático), Stendahl, Appolinaire (“Alcools”) Guillevic, Char (“Fureur et mystére), Pound (uma “Antologia poética”, traduzida para português) Saint John Perse, Ritsos e Enzensberger. E Baudelaire, todo! A poesia, sobretudo, mas também algum romance iam-me vacinando contra as derivas ideológicas mais dogmáticas. A explosão de Maio e o Agosto em Praga confirmaram ou fortaleceram as minhas ulteriores escolhas. E mostraram-me que era possível fazer política, ser contra, sem estar devedor de parelhos políticos que se iam revelando “cadaverosos”.
Não vou prosseguir esta lista que agora me parece enorme. Recordo-me, sem vergonha nem remorso que, academicamente, 68 foi um ano, digamos, “improdutivo”. Agora, à distância percebo porque preteri as sebentas e as deixei estar quietinhas numa estante donde só terão saído tarde e a más horas.
E convenhamos: quando tudo parecia estar a ser posto em causa (até os EUA tinham apanhado em cima com a ofensiva do Tet no Vietnam!) que valia um curso? E a "revolução" parecia tão sedutora...

*A fotografia pertence à série "Biblioteca a rebentar pelas costuras procura casa onde caiba" e seriam reconhecíveis os meus amados surrealistas, os dadaístas, os situacionistas, Vaneighem e Debord ao canto) bem como uma série de livros sobre África entre uma estatueta africana verdadeira!- e a fotografia de um trisavô (José Costa Alemão, capitão de 2ª linha, explorador no sul de Angola, que viveu rico e morreu pobre). Uma das fotografias em cima dos livros retrata o Maio possível português: Coimbra, Abril de 69. Lá chegaremos...



4 comentários:

josé disse...

O roteiro, mostra uma coisa:

Quem queria conhecer o que era proibido, tinha sempre possibilidades de o fazer. E sem muito custo, a não ser a esportulação da petite monnaie.

O que desagua numa outra constatação ( galicismo adequado): a censura raramente é eficaz e destina-se aos débeis e desinteressados. Que continuariam a sê-lo, caso não tivessem tutela do espírito.

Por outro lado, não conta com um fenómeno psicológico de sempre: o fruto proibido é sempre o mais desejado.

E em remate: o regime de Salazar/Caetano, neste aspecto, estava prenhe de estupidez.

M.C.R. disse...

1. de facto quem queria conhecer conseguia desde que tivesse dinheiro (bastante, apesar de tudo...) oportunidade, possibilidades de viajar e sorte na fronteira quando regressasse.

2. da lista de livros alguns há que NUNCA se conseguiriam em Portugal (os sobre Africa, o Wright, o Malcolm X, os cahiers marxistes-leninistes, o Althusser, por exemplo)

3 Por baixo da mesa compravam-se em raras, muito raras livrarias alguns outros (Sartre, por exemplo). Era preciso ser-se conhecido do livreiro e, regra geral, pagava-se um preço forte.

4 Outro grupo er "apanhável" logo que a edição chegava à rua: o caso de E. Snow logo depois proibido, alguns romances e muito ensaio. Ou seja: mais uma vez tinham de entrar em jogo a oportunidade, o dinheirinho fresco e a sorte. Para um visitante assíduo de livrarias a coisa era factível mas não fácil.

5 Havia ainda uma outra coisa a favor dos leitores compulsivos e interessados: naquele tempo, falava-se de livros, discutia-se e emprestavam-se os mesmos.

6 A censura era e é sempre perigosa porque corta mesmo a possibilidade de se saber da existência de uma coisa. só há o que se fala. claro que a debilidade de uns pode ser a sua força mas a verdade é que muitas vezes nem os mais fortes e curiosos sabiam da existência de um fruto, proibido ou não.

7 Estou convicto que Salazar e Caetano sabiam perfeitamente quais eram os limites do seu regime autoritário e ditatorial de baixa intensidade. Não eram uns centos de intelectuais que os iriam incomodar. criaram um sistema para os manter sob controlo e só agiam quando a coisa se complicava ou ameaçava complicar. Provavelmente não contavam com os efeitos cruzados da emigração, da guerra, do turismo de massas do final dos anos sessenta. como não terão contado com as modificações internacionais e algum desanuviamento na guerra fria.

josé disse...

Tenho uma dúvida:

Em Novembro de 68, a d.quixote, publicou um dos seus cadernos, com o título A Revolta de Maio em França. Os textos, eram traduções de artigos e entrevistas em revistas como o L´Express, o Nouvel Observateur e o L´Événemment.

A pergunta é: esse livro foi editado ( eu tenho-o e até o coloquei em imagem), logo saiu á rua num dia assim como o daqueles dias. Mas, terá sido apreendido?

Em finais de 68, Caetano já mandava e a Primavera ainda começava, mas quer-me parecer que o livro esteve proibido. Será? Lembra-se?

josé disse...

Sabe o que me incomoda no salazarismo/caetanismo?

A extrema direita, ao próprio regime.

FOi esse o problema.