Citar o que se não conhece para falar de coisas mais ou menos comuns.
Uma senhora jornalista do Público entendeu titular um seu texto sobre a guerra do alecrim e mangerona do casamento homossexual assim: do Capital ao Kamasutra.
Quem distraidamente ler o título poderá pensar que a criatura terá lido ambos os calhamaços e poderá mesmo ter-se enternecido: coitada: tão nova e à pega com aquelas duas desconformidades.
Pela parte que me toca, li apenas o livro 1 do primeiro e boa parte de uma versão, eventualmente truncada, do segundo numa edição espanhola e sigilosa vai para mais de quarenta anos. Aliás “O Capital” e depois os “Grundrisse” na velha 10-18, sucederam-se aos textos mais curtos e clássicos que qualquer universitário de esquerda que se prezasse tinha de ler. Isso, um par de Lenines, o nefando “Materialismo Histórico” do Zamora, algum Lukacks, muito Lefebre, “A origem da Família” e alguns tomos de História (desde o Soboul da Revolução Francesa, até ao Hauser da Historia Social da Literatura e da Arte, com passagem por Plekanov e mais uns tantos) faziam parte da corrida (da maratona) de obstáculos com que um filho da burguesia se ia tentando transformar em revolucionário.
Em boa verdade, a maioria, a imensa maioria, não lia nada disto. Limitavam-se a uns livrinhos e a muita romançada “realista e social” a começar por um Jorge Amado (tão excelente autor!...) que caira na esparrela de publicar uma coisa horrenda chamada “Os subterrâneos da liberdade” e a acabar num par de autores soviéticos que não chegavam aos pés do Gorki. Na literatura indígena usava-se e abusava-se da má poesia panfletária esquecendo sobretudo a boa. Era o ar do tempo.
Voltando, porém, à senhora que ocupa a última página do Publico, estou em crer que se baldou quer ao Capital quer ao Kamasutra. No que só teve bom gosto, convenhamos. Todavia, ao ler-lhe a prosa desconexa, fica-se com a ideia de que ela pretende passar por leitora dos dois textos.
Não se vê como depois de os ler, se os leu, venha agora falar da passagem da leitura de um para o outro, ou seja do mais moderno para o mais antigo, caracterizando a pequena turbamulta pró casamento dos homossexuais em adeptos do Kamasutra (???!!!) em oposição a uma mais antiga gentinha devedora do Capital.
Eu sei que estas fórmulas bombásticas estão na moda. Basta ser atrevido e pensar que nenhum leitor lhe sairá ao caminho. Mas de vez em quando um velhadas ranzinza salta para a arena. E vejamos: a senhora resolve falar do rapto de Aldo Moro pela rapaziada das Brigadas Vermelhas. Foi um crime e mais do que isso uma burrice e um desafio que nenhum Estado toleraria. Porém, ao descrever a prisão de Moro, diz-nos que por um lado os brigadistas queriam forçá-lo a ler os clãssicos marxistas e revolucionários e que Moro, “obviamente, os tinha já lido. A gente pasma. Eis que Moro que não era inculto, também petiscava na gamela revolucionária. Não consta e, após uma breve volta a livros e textos da época, não vejo sinais disso. Que dois revolucionários patetas entendessem dar um clister de Gramsci ao preso, não duvido. Que ele soubesse vagamente duas ou três coisas do antigo dirigente comunista não me custa. Mas ler o que se chama ler? E o Marx? E o Lenin? Quiçá o Mao ou até o Stalin? Isto para só referir os pesos pesados ou os que passavam por o ser.
Eu sei que uma lenda persistente põe Moretti a explicar Marx, de livro em riste, ao prisioneiro. Mas outras e muito fiáveis fontes atiram por terra esta historieta que terá (para alguns) alguma graça mas que não resiste a uma leitura dos factos, da época e do que se conhece do carácter dos intervenientes.
Nos anos sessenta, a direita não lia Marx e a esquerda também não abusava. Podiam comprar os livros que aliás pululavam em tudo o que era livraria e editora, sobretudo nas editoras conservadoras mas com espírito capitalista. Mas ler, o que se chama ler, népia. Eu suponho que a senhora jornalista não era ainda nascida nesses anos de chumbo, ou sendo-o já, teria muito verdes anos para poder com segurança vir atirar estas ao pagode. Sempre lhe diria que mesmo no seio do poderoso e estruturado Partido Comunista Italiano, Marx era um quase desconhecido (tirando o Manifesto, claro e mais dois ou três breves opúsculos). Disso mesmo se faziam eco os críticos que mais tarde vieram a fundar Il Manifesto e e escrever as famosas “200 teses”. E nos restantes países ocidentais a coisa andava pela mesma situação. A imensa maioria dos quadros e dos militantes fazia gala de muito tarefismo, muita devoção, e pouquíssimo estudo. Os autores citados acima e muitos outros eram pascigo de meia dúzia de intelectuais, com pouca autoridade no meio partidário, suspeitos a mais das vezes ( e nem sempre sem razão) de heterodoxia.
A segunda parte do redundante texto que venho citando dá aos adeptos do casamento dos homossexuais (e aos que não se lhe opõem como é o meu pobre caso) uma fama de perseguição a outrance da moda e da modernidade e um singular penchant pelo Kamasutra.
E este também não me parece ser texto muito divulgado entre os lusitanos. Excepto na versão “BD” de Manara ou nalguma edição resumida, como já disse. Parafraseando um velho amigo, o “Kamasutra” é um livro pitoresco mas cansativo. Um manual de ginástica dificultoso e, finalmente, pouco útil. Excepto para as entorses e outros desastres sempre possíveis a quem se atrever a tentar levar à prática algumas das menos difíceis posições.
Conta-se, e esta é para terminar, que um inocente erro tipográfico na primeira ou segunda edição do “Ulisses” fez aparecer uma criatura em que Joyce jamais pensara e que, aliás, não cabia naquele dia fatigante mas genial. As edições foram-se sucedendo, o erro ter-se-á mantido até ao ponto de aparecerem algumas sábias e copiosas teses universitárias sobre essa esboçada e entrevista criatura que há uns anos desapareceu quando se resolveu finalmente expurgar o Ulisses da patina de erros, virgulas e demais postiços. Não sei o que sucedeu aos autores das teses, reputados estudiosos da obra joyciana. Provavelmente estarão a discutir a teoria do valor e a mais valia com Moretti e o fantasma de Moro. Antes isso do que pregarem a homofilia.
Quem distraidamente ler o título poderá pensar que a criatura terá lido ambos os calhamaços e poderá mesmo ter-se enternecido: coitada: tão nova e à pega com aquelas duas desconformidades.
Pela parte que me toca, li apenas o livro 1 do primeiro e boa parte de uma versão, eventualmente truncada, do segundo numa edição espanhola e sigilosa vai para mais de quarenta anos. Aliás “O Capital” e depois os “Grundrisse” na velha 10-18, sucederam-se aos textos mais curtos e clássicos que qualquer universitário de esquerda que se prezasse tinha de ler. Isso, um par de Lenines, o nefando “Materialismo Histórico” do Zamora, algum Lukacks, muito Lefebre, “A origem da Família” e alguns tomos de História (desde o Soboul da Revolução Francesa, até ao Hauser da Historia Social da Literatura e da Arte, com passagem por Plekanov e mais uns tantos) faziam parte da corrida (da maratona) de obstáculos com que um filho da burguesia se ia tentando transformar em revolucionário.
Em boa verdade, a maioria, a imensa maioria, não lia nada disto. Limitavam-se a uns livrinhos e a muita romançada “realista e social” a começar por um Jorge Amado (tão excelente autor!...) que caira na esparrela de publicar uma coisa horrenda chamada “Os subterrâneos da liberdade” e a acabar num par de autores soviéticos que não chegavam aos pés do Gorki. Na literatura indígena usava-se e abusava-se da má poesia panfletária esquecendo sobretudo a boa. Era o ar do tempo.
Voltando, porém, à senhora que ocupa a última página do Publico, estou em crer que se baldou quer ao Capital quer ao Kamasutra. No que só teve bom gosto, convenhamos. Todavia, ao ler-lhe a prosa desconexa, fica-se com a ideia de que ela pretende passar por leitora dos dois textos.
Não se vê como depois de os ler, se os leu, venha agora falar da passagem da leitura de um para o outro, ou seja do mais moderno para o mais antigo, caracterizando a pequena turbamulta pró casamento dos homossexuais em adeptos do Kamasutra (???!!!) em oposição a uma mais antiga gentinha devedora do Capital.
Eu sei que estas fórmulas bombásticas estão na moda. Basta ser atrevido e pensar que nenhum leitor lhe sairá ao caminho. Mas de vez em quando um velhadas ranzinza salta para a arena. E vejamos: a senhora resolve falar do rapto de Aldo Moro pela rapaziada das Brigadas Vermelhas. Foi um crime e mais do que isso uma burrice e um desafio que nenhum Estado toleraria. Porém, ao descrever a prisão de Moro, diz-nos que por um lado os brigadistas queriam forçá-lo a ler os clãssicos marxistas e revolucionários e que Moro, “obviamente, os tinha já lido. A gente pasma. Eis que Moro que não era inculto, também petiscava na gamela revolucionária. Não consta e, após uma breve volta a livros e textos da época, não vejo sinais disso. Que dois revolucionários patetas entendessem dar um clister de Gramsci ao preso, não duvido. Que ele soubesse vagamente duas ou três coisas do antigo dirigente comunista não me custa. Mas ler o que se chama ler? E o Marx? E o Lenin? Quiçá o Mao ou até o Stalin? Isto para só referir os pesos pesados ou os que passavam por o ser.
Eu sei que uma lenda persistente põe Moretti a explicar Marx, de livro em riste, ao prisioneiro. Mas outras e muito fiáveis fontes atiram por terra esta historieta que terá (para alguns) alguma graça mas que não resiste a uma leitura dos factos, da época e do que se conhece do carácter dos intervenientes.
Nos anos sessenta, a direita não lia Marx e a esquerda também não abusava. Podiam comprar os livros que aliás pululavam em tudo o que era livraria e editora, sobretudo nas editoras conservadoras mas com espírito capitalista. Mas ler, o que se chama ler, népia. Eu suponho que a senhora jornalista não era ainda nascida nesses anos de chumbo, ou sendo-o já, teria muito verdes anos para poder com segurança vir atirar estas ao pagode. Sempre lhe diria que mesmo no seio do poderoso e estruturado Partido Comunista Italiano, Marx era um quase desconhecido (tirando o Manifesto, claro e mais dois ou três breves opúsculos). Disso mesmo se faziam eco os críticos que mais tarde vieram a fundar Il Manifesto e e escrever as famosas “200 teses”. E nos restantes países ocidentais a coisa andava pela mesma situação. A imensa maioria dos quadros e dos militantes fazia gala de muito tarefismo, muita devoção, e pouquíssimo estudo. Os autores citados acima e muitos outros eram pascigo de meia dúzia de intelectuais, com pouca autoridade no meio partidário, suspeitos a mais das vezes ( e nem sempre sem razão) de heterodoxia.
A segunda parte do redundante texto que venho citando dá aos adeptos do casamento dos homossexuais (e aos que não se lhe opõem como é o meu pobre caso) uma fama de perseguição a outrance da moda e da modernidade e um singular penchant pelo Kamasutra.
E este também não me parece ser texto muito divulgado entre os lusitanos. Excepto na versão “BD” de Manara ou nalguma edição resumida, como já disse. Parafraseando um velho amigo, o “Kamasutra” é um livro pitoresco mas cansativo. Um manual de ginástica dificultoso e, finalmente, pouco útil. Excepto para as entorses e outros desastres sempre possíveis a quem se atrever a tentar levar à prática algumas das menos difíceis posições.
Conta-se, e esta é para terminar, que um inocente erro tipográfico na primeira ou segunda edição do “Ulisses” fez aparecer uma criatura em que Joyce jamais pensara e que, aliás, não cabia naquele dia fatigante mas genial. As edições foram-se sucedendo, o erro ter-se-á mantido até ao ponto de aparecerem algumas sábias e copiosas teses universitárias sobre essa esboçada e entrevista criatura que há uns anos desapareceu quando se resolveu finalmente expurgar o Ulisses da patina de erros, virgulas e demais postiços. Não sei o que sucedeu aos autores das teses, reputados estudiosos da obra joyciana. Provavelmente estarão a discutir a teoria do valor e a mais valia com Moretti e o fantasma de Moro. Antes isso do que pregarem a homofilia.
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