A propósito de um aniversário
O holocausto. Até a palavra custa a escrever. Sobre o holocausto, com letra grande ou pequena, tanto faz, já se disse tudo. Resta saber se a mensagem passou. Passou, claro, embora haja sempre quem não ouve, não vê, não sente. Nem acredita. E, convenhamos, que é difícil acreditar. É tudo tão grande, tão premeditado, tão extraordinário...
Mas aconteceu. Aliás, aconteceu algo ainda maior e mais terrível.
De facto não se tratava apenas de exterminar os judeus. Os judeus eram a ponta de um iceberg bem maior e mais trágico. Os judeus eram apenas, permitam-me o cinismo, o princípio de uma experiencia de eugenismo se é que isso tem algum significado. Quando o mundo se desembaraçasse deles pela expedita via dos fornos crematórios, da bala misericordiosa, da morte por inanição ou esgotamento, seguir-se-iam os outros.
Os ciganos, por exemplo. A ordem foi dada: exterminem essa canalha. Cigano apanhado era cigano enviado para um lager. Aqui os cálculos dos carrascos saíram ligeiramente errados. Perseguidos desde sempre por ladrões e nómadas, os ciganos criaram uma atávica desconfiança das autoridades. Nunca se integraram, nunca acreditaram no mundo dos payos (para usar a expressão espanhola)m souberam sempre que mais tarde ou mais cedo (sobretudo mais cedo) a repressão ocorreria. Criaram uma visceral suspeita quanto a fardas. E foi isso que os salvou (enfim salvou os que salvaram): ao mínimo sinal de polícia ou assimilado no horizonte, eis que se escafediam. Bem avisados andaram, diga-se de passagem. Nos memoriais dos campos lá estão milhares de nomes de ciganos.
Depois, uma outra “etnia” que foi perseguida e praticamente exterminada: os alemães negros e mulatos, fruto de uma pequena mestiçagem nos antigos territórios coloniais (Tanganika e Sudoeste Africano – actual Namíbia). Viviam, depois dos alemães terem sido expulsos destes territórios perdidos no fim da 1ª Guerra, na Alemanha umas dezenas de milhares de mestiços e de negros que por razões de ordem variada se tinham acolhido na antiga metrópole. Foram rapidamente presos, enviados para os campos e praticamente desapareceram. Convém lembrar que isto ocorreu logo nos primeiros anos do nazismo triunfante. Um povo ariano só tem uma cor, a branca. E de preferência loira.
Mas não fica por aqui a lista.
Os povos eslavos foram genericamente classificados como Untermenschen. Sub-humanos, se preferem. Serviam, para escravos da raça dos senhores. Escravos sem alma, claro e sem quaisquer direitos. Primeiro foram internados em campos os soldados feitos prisioneiros. Depois, dado que o esforço de guerra, deixava a pátria ariana sem homens, entendeu-se que estes quase animais talvez servissem para trabalhar nos campos. E em certas fábricas. De certo modo foi isso que os salvou de uma morte quase certa.
E, ironia da história, consta que as mulheres alemãs, enfim muitas delas, usaram os sub-humanos, para fins não exactamente ligados à reprodução mas de qualquer modo licenciosos. Quem não tem cão caça com furão, costumam dizer os entendidos.
Nos territórios conquistados, o desprezo pelas populações locais deu lugar a selvagerias inomináveis. À mínima resistência ia tudo raso, homens, mulheres e crianças. Ao fim e ao cabo eram sub-humanos...
Saindo do específico campo das etnias ou pseudo-etnias, lembremos que os campos de concentração começaram por ser alimentados por comunistas, socialistas e homossexuais. Os primeiros por obvias razões e os últimos por doença! Eram os famosos portadores da estrela cor de rosa. Não se fala dos loucos ou dos doentes mentais que também foram exterminados por mera eugenia. O Reich milenar não podia ter tarados. De resto esta noção de tarado sobrepunha-se a uma outra a de degenerado. E degenerado dava para tudo, desde o indivíduo associal até ao artista plástico que pintava ou esculpia coisas que o “pintor da brocha gorda” não percebia ou não gostava. Houve, até uma exposição de “arte degenerada” para mostrar ao povo ariano e saudável o que não devia ver, fazer ou comprar.
Com o correr dos tempos, chegaram aos campos os religiosos, primeiro as pequenas seitas evangélicas, depois os luteranos e os católicos. Não que as respectivas igrejas se tenham ilustrado particularmente na defesa dos direitos humanos. Todavia houve muitos crentes que seguindo a sua consciência e fortalecidos pela fé, entenderam dizer não ao admirável mundo novo e pagão que os hitlerianos representavam. Campo com eles.
Não vou especular sobre os números (que existem, claro) de mortos nos campos. Pouco me dá que em vez de seis milhões só tenham morrido, cinco ou quatro milhões de judeus. Não são os números (apesar de tudo impressionantes) que contam mas a específica e declarada intenção de não deixar um só que fosse.
E é esse o crime imperdoável. Crime que não se limita, já o disse, aos judeus mas a todos quantos não entravam na exclusiva lista de bons arianos. E isto às vezes é esquecido. Até pelos judeus que foram, de todo o modo, os mais eficazmente perseguidos. A pontos de com isso se prejudicar o esforço de guerra!
Uma última nota: não se diga que foram os alemães e só eles os perseguidores. Por um lado houve uma pequena mas corajosa oposição interna que foi sendo paulatinamente esmagada logo a partir dos primeiros dias do 3º Reich. O medo fez o resto e a guerra desviou as atenções.
A perseguição das minorias étnicas, sexuais, políticas e religiosas foi alegremente coadjuvada pelas populações dos territórios conquistados. Com um particular destaque para os franceses que denunciaram os seus judeus, que os prenderam e enviaram para campos de trânsito (Drancy, por exemplo). Com mais destaque ainda para os ucranianos que linchavam russos e judeus com idêntico fervor. Com mais destaque para os ustachis croatas que se lançaram à caça de sérvios comunistas ou judeus ou as duas coisas ao mesmo tempo. E não se esqueça neste festim infame o papel da pequena minoria muçulmana jugoeslava que não deixou os seus créditos pró-eixo em mãos alheias.
Como contraste, deve ser recordado que no Norte de África, milhares de judeus foram salvos por árabes, que os esconderam e auxiliaram na altura em que os alemães entenderam estender a essa zona a caça ao judeu.
A história é sempre mais complicada do que à primeira vista parece.
Nota final: volta e meia aprecem os chamados negacionistas ou revisionistas a negar o extermínio de judeus, os fornos crematórios e os números de mortos. Devem ser combatidos com rigor, com documentos, com a verdade. E isso é fácil. Todavia, houve, e há, quem opte por um esquema mais estúpido e menos educativo: proibir sob pena de prisão a divulgação dessas teorias. Por um lado não resolve nada, por outro responde com violência à violência das ideias. E estas, como a hidra, não morrem só porque as decepam. Bem pelo contrário. Renascem aureoladas pelo sacrifício e pelo martírio.
O holocausto. Até a palavra custa a escrever. Sobre o holocausto, com letra grande ou pequena, tanto faz, já se disse tudo. Resta saber se a mensagem passou. Passou, claro, embora haja sempre quem não ouve, não vê, não sente. Nem acredita. E, convenhamos, que é difícil acreditar. É tudo tão grande, tão premeditado, tão extraordinário...
Mas aconteceu. Aliás, aconteceu algo ainda maior e mais terrível.
De facto não se tratava apenas de exterminar os judeus. Os judeus eram a ponta de um iceberg bem maior e mais trágico. Os judeus eram apenas, permitam-me o cinismo, o princípio de uma experiencia de eugenismo se é que isso tem algum significado. Quando o mundo se desembaraçasse deles pela expedita via dos fornos crematórios, da bala misericordiosa, da morte por inanição ou esgotamento, seguir-se-iam os outros.
Os ciganos, por exemplo. A ordem foi dada: exterminem essa canalha. Cigano apanhado era cigano enviado para um lager. Aqui os cálculos dos carrascos saíram ligeiramente errados. Perseguidos desde sempre por ladrões e nómadas, os ciganos criaram uma atávica desconfiança das autoridades. Nunca se integraram, nunca acreditaram no mundo dos payos (para usar a expressão espanhola)m souberam sempre que mais tarde ou mais cedo (sobretudo mais cedo) a repressão ocorreria. Criaram uma visceral suspeita quanto a fardas. E foi isso que os salvou (enfim salvou os que salvaram): ao mínimo sinal de polícia ou assimilado no horizonte, eis que se escafediam. Bem avisados andaram, diga-se de passagem. Nos memoriais dos campos lá estão milhares de nomes de ciganos.
Depois, uma outra “etnia” que foi perseguida e praticamente exterminada: os alemães negros e mulatos, fruto de uma pequena mestiçagem nos antigos territórios coloniais (Tanganika e Sudoeste Africano – actual Namíbia). Viviam, depois dos alemães terem sido expulsos destes territórios perdidos no fim da 1ª Guerra, na Alemanha umas dezenas de milhares de mestiços e de negros que por razões de ordem variada se tinham acolhido na antiga metrópole. Foram rapidamente presos, enviados para os campos e praticamente desapareceram. Convém lembrar que isto ocorreu logo nos primeiros anos do nazismo triunfante. Um povo ariano só tem uma cor, a branca. E de preferência loira.
Mas não fica por aqui a lista.
Os povos eslavos foram genericamente classificados como Untermenschen. Sub-humanos, se preferem. Serviam, para escravos da raça dos senhores. Escravos sem alma, claro e sem quaisquer direitos. Primeiro foram internados em campos os soldados feitos prisioneiros. Depois, dado que o esforço de guerra, deixava a pátria ariana sem homens, entendeu-se que estes quase animais talvez servissem para trabalhar nos campos. E em certas fábricas. De certo modo foi isso que os salvou de uma morte quase certa.
E, ironia da história, consta que as mulheres alemãs, enfim muitas delas, usaram os sub-humanos, para fins não exactamente ligados à reprodução mas de qualquer modo licenciosos. Quem não tem cão caça com furão, costumam dizer os entendidos.
Nos territórios conquistados, o desprezo pelas populações locais deu lugar a selvagerias inomináveis. À mínima resistência ia tudo raso, homens, mulheres e crianças. Ao fim e ao cabo eram sub-humanos...
Saindo do específico campo das etnias ou pseudo-etnias, lembremos que os campos de concentração começaram por ser alimentados por comunistas, socialistas e homossexuais. Os primeiros por obvias razões e os últimos por doença! Eram os famosos portadores da estrela cor de rosa. Não se fala dos loucos ou dos doentes mentais que também foram exterminados por mera eugenia. O Reich milenar não podia ter tarados. De resto esta noção de tarado sobrepunha-se a uma outra a de degenerado. E degenerado dava para tudo, desde o indivíduo associal até ao artista plástico que pintava ou esculpia coisas que o “pintor da brocha gorda” não percebia ou não gostava. Houve, até uma exposição de “arte degenerada” para mostrar ao povo ariano e saudável o que não devia ver, fazer ou comprar.
Com o correr dos tempos, chegaram aos campos os religiosos, primeiro as pequenas seitas evangélicas, depois os luteranos e os católicos. Não que as respectivas igrejas se tenham ilustrado particularmente na defesa dos direitos humanos. Todavia houve muitos crentes que seguindo a sua consciência e fortalecidos pela fé, entenderam dizer não ao admirável mundo novo e pagão que os hitlerianos representavam. Campo com eles.
Não vou especular sobre os números (que existem, claro) de mortos nos campos. Pouco me dá que em vez de seis milhões só tenham morrido, cinco ou quatro milhões de judeus. Não são os números (apesar de tudo impressionantes) que contam mas a específica e declarada intenção de não deixar um só que fosse.
E é esse o crime imperdoável. Crime que não se limita, já o disse, aos judeus mas a todos quantos não entravam na exclusiva lista de bons arianos. E isto às vezes é esquecido. Até pelos judeus que foram, de todo o modo, os mais eficazmente perseguidos. A pontos de com isso se prejudicar o esforço de guerra!
Uma última nota: não se diga que foram os alemães e só eles os perseguidores. Por um lado houve uma pequena mas corajosa oposição interna que foi sendo paulatinamente esmagada logo a partir dos primeiros dias do 3º Reich. O medo fez o resto e a guerra desviou as atenções.
A perseguição das minorias étnicas, sexuais, políticas e religiosas foi alegremente coadjuvada pelas populações dos territórios conquistados. Com um particular destaque para os franceses que denunciaram os seus judeus, que os prenderam e enviaram para campos de trânsito (Drancy, por exemplo). Com mais destaque ainda para os ucranianos que linchavam russos e judeus com idêntico fervor. Com mais destaque para os ustachis croatas que se lançaram à caça de sérvios comunistas ou judeus ou as duas coisas ao mesmo tempo. E não se esqueça neste festim infame o papel da pequena minoria muçulmana jugoeslava que não deixou os seus créditos pró-eixo em mãos alheias.
Como contraste, deve ser recordado que no Norte de África, milhares de judeus foram salvos por árabes, que os esconderam e auxiliaram na altura em que os alemães entenderam estender a essa zona a caça ao judeu.
A história é sempre mais complicada do que à primeira vista parece.
Nota final: volta e meia aprecem os chamados negacionistas ou revisionistas a negar o extermínio de judeus, os fornos crematórios e os números de mortos. Devem ser combatidos com rigor, com documentos, com a verdade. E isso é fácil. Todavia, houve, e há, quem opte por um esquema mais estúpido e menos educativo: proibir sob pena de prisão a divulgação dessas teorias. Por um lado não resolve nada, por outro responde com violência à violência das ideias. E estas, como a hidra, não morrem só porque as decepam. Bem pelo contrário. Renascem aureoladas pelo sacrifício e pelo martírio.
1 comentário:
Terrível. O ser humano é capaz do mais belo e do mais hediondo.
E, afinal, não foi assim há tanto tempo.
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