15 janeiro 2009

O leitor (im)penitente 43


Um rei mago passou por aqui

“Um pouco mais tarde, Alice disse:
Eu não sabia que os gatos do Cheshire sorriam. Aliás nem sabia que os gatos conseguiam sorrir.
Qualquer gato pode sorrir, disse a Duquesa. E a maioria deles fá-lo.”*

Os leitores da série “o gato que pesca” ter-se-ão surpreendido com um comentário de JSC que desconfia de gatas que escrevem. Erro forte dele. E fatal. Há gatos (e gatas!!!) para tudo. Desde Murr o gato escritor, até Felix o artista do cinema mudo. E ainda não referi o “Dueto para gatos” atribuído a Rossini. Há gatos contemplativos em mosteiros (os chartreux) há os gatos de Siné para não falar do Gato das Botas que tornou rico o seu dono.
Mas a prova provada do poder imenso dos gatos está aqui na minha mão: um pequeno livro de capa amarela, editado a (só) oitenta exemplares rigorosamente fora do comércio.
Eu desejava-o. O livro, claro. Não como livro, tenho demasiados, mas como um livro escrito por um amigo, cuja poesia subtil, densa, viajeira, me acompanha desde os anos sessenta. E é uma longa história, esta, a da poesia de Manuel António Pina que ficaria verde de raiva se eu me atrevesse a qualifica-lo “autor de culto” que já não é pois, apesar da excelente critica que a sua escrita suscita, tem um punhado alargado de leitores que o retira do pacífico anonimato onde tanto autor naufraga.
Esta é a segunda vez que recebo um livro dele, “fora do mercado”, um livro pensado para amigos. É também a segunda vez que, leitor impenitente e comprador compulsivo de livros, pedi um livro a um autor. A primeira foi ao Fernando Assis Pacheco, outro amigo (agora desaparecido da humanal vista embora se saiba ou pelo menos se desconfie que passa tardes a jogar ao voltarete com os senhores Voltaire e Rabelais. “E com o Rilke?”, pergunta a Kiki alvoroçada. “Com o Rilke joga bilhar às segundas feiras e vê futebol: o campeonato da Bundesliga, claro”.) antigo e poeta.
Escrevia acima que quis ter este livro, este especialmente. Não só por que julgo ter todos os outros livros publicados por MAP mas sobretudo porque o considero uma das mais fortes presenças poéticas destes últimos trinta ou quarenta anos. (Aliás já aqui o escrevi um par de vezes. Suponho mesmo que até lhe transcrevi um poema.)
Claro que já li o livro. Ou melhor: claro que já completei a primeira de muitas leituras que dele farei. O milagre da poesia é este: a cada leitura surgem coisas novas, não sei se é o poema que subtilmente vai mudando ou se somos nós que mudamos e continuamente o descobrimos, novo e primordial a cada leitura que dele fazemos.
E foi uma carta das gatas de cá para as gatas conviventes com o Manel que desencadeou tudo isto. Publicada (o gato que pesca 4, em Dezembro pp) pelos meus cuidados nesta barca chamada incursoes (sem til, s.f.f.), sob a forma de garrafa esperançosamente atirada ao mar cor de vinho, arribou a trezentos metros (a voo de pássaro) da minha casa, encontrou as destinatárias, estas miaram e ronronaram o que tinham que miar e ronronar e por intermédio do Arnaldo Saraiva, o livro fez uma perigosa travessia até ao quiosque onde compro o jornal. Hoje pela manhã, a caminho do primeiro café e dos jornais eis que ele me chegou à mão grata e comovida. Entretanto da almirante Kami recebia um mail do Manel António Pina perguntando se o livrinho vencera a aspereza do caminho. Venceu, pois claro, chegou cansado, dentro de dois envelopes mas mal o abri, sacudiu o pó do caminho e mostrou o oiro, a mirra e o incenso de que vinha carregado.
Da esplanada onde depois da bica, li a dedicatória e o primeiro poema, via-se o jardim embrulhado por chuva miúda e persistente. Todavia, olhando bem, adivinhava-se, não o sol de inverno que andará a passear por outros hemisférios mas um finíssimo toque de arco-íris. Não sei se alguém mais o viu, não sei se vocês sabem que quem for até ao fim do arco encontrará um pote cheio de moedas de oiro, mas garanto que no princípio, isto é ali na esplanada, aquecida e deserta o arco-íris começava num livrinho de capa amarela chamado “Gatos”.
Mas isto são coisas que só quem acredita em gatos que falam consegue ver...

* "Alice no país das maravilhas" Lewis Carroll

** Na gravura: fotografia (de Luisa Ferreira) de Manuel António Pina, incluída no livro "Gatos". Acompanha-o a gata Bé (?) se não erro.

1 comentário:

O meu olhar disse...

Pois é mcr, como sabe eu sou daquelas pessoas que acreditam em gatas que falam e que até escrevem. Há para aí uns cépticos mas, face às evidências, vão acabar por ficar convencidos da versatilidade dos gatos e das gatas, pois claro!

É um sortudo por ter quem lhe faça esses mimos de oferta de preciosidades. Ainda bem que lhe dá o devido valor. Excelente texto!

Já agora, espero que goste da música da Diana Krall. Desta vez não me aventurei a colocar a música a partir do computador lá de casa que tem o som avariado e que me fez, por duas vezes, na Carla Bruni e na Amália, enganar-me na música que queria colocar. Já corrigi e na Amália, lá está o belíssimo Barco Negro que falamos ao almoço. Na Carla Bruni está agora a canção dela que conheço e que gosto muito.