1. De quando em vez, vem à liça a questão da possibilidade de os juízes desempenharem, em acumulação, funções nos chamados órgãos de "justiça desportiva". De há muito que se conhece e tolera a prática de alguns juízes integrarem o Conselho de Disciplina e o Conselho de Justiça da FPF e, bem assim, a Comissão Disciplinar da Liga. Ao que acresce a participação - menos divulgada, mas multiplicada - de magistrados nos órgãos homólogos das associações distritais. A dita praxe tem subsistido sem censura pública, mas com sérias reservas de uma parte do corpo judicial, apesar de só confessadas em privado. Num país pequeno, em que "toda a gente" se conhece, a expressão pública da discordância com esse cúmulo continua a aparecer como uma quebra de solidariedades pessoais e, o que será decerto "pior e mais grave", como uma quebra da empatia corporativa.
A questão voltou agora a colocar-se nas franjas da vertigem mediática do caso "Apito Dourado", embora não pareça vislumbrar-se qualquer relação com o mesmo. Seja como seja, o problema justifica exame autónomo e deve ser tratado com total abstracção desse contexto.
2. O estatuto profissional dos juízes é regulado pela Constituição com invulgar detalhe e densidade. O que, por um lado, se compreende porque os juízes são titulares de órgãos de soberania. E, por outro, porque, num sistema em que a magistratura judicial se estrutura numa carreira, a legitimidade dos juízes depende essencialmente do respectivo estatuto. Ao nível constitucional, a legitimação alicerça-se nos valores da independência, imparcialidade e isenção e no correspondente quadro de garantias. Neste último, destaca-se o regime de rigorosa exclusividade e a previsão da incompatibilidade absoluta com quaisquer outros ofícios ou encargos.
Em sede de incompatibilidades, o texto da lei fundamental é, aliás, de uma clareza vítrea, a não deixar folga para duas interpretações. "Os juízes em exercício - diz a Constituição - não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada." Ressalva-se tão-só o exercício de funções docentes ou de investigação jurídica, desde que não remuneradas. O que significa, a bem dizer, que está vedado o cúmulo de qualquer outro tipo de funções, mesmo que a título gratuito.
Não se fala, note-se, numa mera proibição do exercício de outra "profissão" ou "actividade profissional" - referência essa que surge no estatuto legal dos magistrados, em manifesta desvirtuação (quiçá violação) da Constituição. Interdita-se, isso sim, mais abrangentemente, o desempenho de qualquer função pública ou privada! Ora, a participação nos ditos órgãos consubstancia o exercício de uma função privada ou, quando muito, no caso de se ver aí uma tarefa de regulação, de uma função pública. A sobreposição de tais funções com o múnus judicial viola, por conseguinte, o estatuto constitucional dos juízes e congraça - por muito que isso doa, custe ou belisque - uma séria falta deontológica e disciplinar.
3. Não vale invocar - como se tem feito amiúde - a natureza "quase-jurisdicional" dos casos e incidências que são objecto da dita "justiça desportiva". Tais órgãos, visando embora a composição de conflitos, não são tribunais nem desenvolvem actividade materialmente jurisdicional. Se se tratasse de funções jurisdicionais, teriam necessariamente de ser atribuídas a juízes e a verdade é que podem ser ocupadas por qualquer licenciado em direito. Mesmo que se tivessem por tribunais, sobejariam problemas inúmeros, que dificilmente casam com a lógica jurisdicional. Como poderia o mesmo juiz ser titular de dois tribunais, ainda por cima pertencentes a ordens que seriam distintas? Como justificar o especial processo de designação na área desportiva? Que critérios seleccionariam alguns juízes para o desempenho de tais tarefas?
Complexo sector este - o desportivo! -, que tudo faz, no plano nacional e internacional, para afastar a competência e jurisdição dos tribunais comuns do julgamento dos casos que suscita (quase recordando os foros privativos medievais) e que, depois, não se coíbe de querer envolver, a todo o transe, verdadeiros juízes no processo decisório.
Menos ainda colhe a peregrina tese de que a presença de juízes em tais órgãos se destina prestigiar essas entidades e a credibilizar as suas decisões. Só faltava agora que o sistema judicial, para lá do que já lhe compete, se encarregasse ainda de assegurar o prestígio e a credibilidade das instituições do futebol. Eis a suma ironia: para emprestar o seu prestígio ao futebol, alguns magistrados acabam a pôr em crise uma das garantias que visa precisamente acautelar o prestígio e a imparcialidade do poder judicial.
4. Está fora de causa a montagem de uma perseguição a todos os que, ao longo dos anos, infringiram a regra constitucional. O clima generalizado de contemporização, a falta de consciência da ilicitude, a ambígua conivência do Conselho Superior da Magistratura e uma errada leitura do art. 13.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais são aptos a pôr de lado o espectro do sancionamento disciplinar. Só não deverá ser assim, se se comprovar que alguns dos juízes aceitaram pagamentos em "senhas de presença" (ou até em "ajudas de custo" desproporcionadas) - caso em que nada, nem o "quantum" desprezível dos montantes, os deverá desculpar.
Não deve, de resto, cair-se na fácil tentação de demonizar os órgãos do futebol, fazendo passar a ideia de que, para sua protecção, atraíram e arregimentaram magistrados. Os juízes conhecem bem o seu estatuto e as dúvidas que ele suscita e, ao longo do tempo, muitos houve que se mostraram ciosos do cumprimento das exigências constitucionais. Assim saibam os conselhos superiores fazer valer a concepção constitucional do juiz, determinando uma rigorosa proibição de cúmulo de funções, com especial aplicação à esfera desportiva.
Como, em alguns aspectos, bem demonstra a nova Concordata ontem assinada, afinal nunca é tarde para fazer cumprir integralmente a Constituição.
Por PAULO C. RANGEL
Jurista; docente universitário
19 maio 2004
"Os Juízes e o Futebol "
Pelo interesse do tema e pela justeza como é abordado, transcreve-se, com a devida vénia, a crónica de Paulo Rangel, hoje, no Público.
Marcadores: direito/justiça/judiciário, L.C.
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