16 junho 2004

Ainda a Formação de Magistrados

A 3 de Junho demos a conhecer, aqui no Incursões, a propósito de comentário à notícia do Público desse dia, com o título “Mais de 75% de reprovações nos exames de acesso à magistratura”, uma parte da comunicação feita por Rui do Carmo (Procurador da República, director-adjunto do CEJ) no Colóquio Internacional da Medel, de 28 de Maio (também aqui referenciado em vários outros posts).

Tal comunicação, feita por quem tem efectiva experiência na formação de magistrados e sobre ela tem reflectido com seriedade merece, a nosso ver, continuar a ser dada a conhecer.
Tendo já aqui sido divulgado o correspondente ao ponto 1 dessa comunicação - “O recrutamento dos magistrados não deve ter como única via a selecção de jovens licenciados e esta não pode constituir uma simples reavaliação da aprendizagem universitária “ - revertemos agora à sua Introdução e seguimos para o ponto II (a que se seguirá, oportunamente, os pontos III e IV).

"FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS
Algumas Reflexões à Luz da Realidade Portuguesa"


"Se a formação dos magistrados e dos restantes profissionais do foro sempre foi um aspecto essencial para a qualidade da resposta do sistema de justiça, os tempos actuais reforçam a sua importância. O aumento da complexidade social, da complexidade dos litígios investigados, apreciados e decididos pelos tribunais e da complexidade do sistema normativo, a maior exigência e capacidade crítica dos cidadãos na afirmação dos seus direitos e face aos aplicadores da lei, o reforço dos mecanismos de controlo processual e público da actividade dos magistrados e dos tribunais, a constante melhoria da preparação e do apetrechamento técnicos de importantes sectores que se relacionam diariamente com a prática judiciária, as mutações que se vêm afirmando quanto ao papel da lei e do sistema de administração da justiça – são constatações que impõem uma maior exigência no recrutamento, selecção e formação dos juízes e procuradores, e um maior investimento nesta área.
Este tema é, neste momento, particularmente importante em Portugal, pois começa-se a discutir uma eventual alteração da lei que regula a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários (a escola da magistratura portuguesa), na qual, para além daquilo que resulta já do próprio nome da lei, está concentrada a definição legal de toda a matéria respeitante às condições de ingresso na magistratura, à selecção dos candidatos, à escolha da magistratura, à organização da formação inicial e à organização da formação permanente.
Portugal tomou, em 1977, a opção de criar uma entidade responsável pelo recrutamento, selecção e formação dos magistrados - o Centro de Estudos Judiciários, em cujos órgãos de decisão participam os Conselhos Superiores das magistraturas e representantes do poder político -, que veio a ser instalado em Dezembro de 1979 e nestes 25 anos de actividade formou cerca de três mil novos juízes e procuradores.
A criação do Centro de Estudos Judiciários foi uma aposta nas ideias de construção de um processo próprio de formação de magistrados, não restrito às áreas técnicas do direito; de institucionalização dessa formação; de formação conjunta de juízes e procuradores; e de recrutamento de jovens licenciados para ambas as magistraturas. Ideias que, no essencial, se mantiveram até hoje, apesar de significativas alterações introduzidas em 1998, que, nos aspectos que aqui nos interessam, se traduziram num reforço do período de formação conjunta - de 10 meses passou para 22 meses - e na elevação da idade mínima de ingresso – fixada inicialmente nos 23 anos e que aumentou pela obrigatoriedade de os candidatos serem licenciados em direito há, pelo menos, dois anos, sendo hoje de 29 anos a idade média dos candidatos admitidos e de 26 anos a idade predominante.
No debate à volta da eventual alteração à Lei do CEJ, que, como já referi, agora começa a aparecer à luz do dia, não é posto em causa o Centro de Estudos Judiciários enquanto entidade responsável pelo recrutamento, selecção e formação dos magistrados, ou seja a ideia a que chamei de institucionalização da formação; assim como se continua a subscrever a ideia de recrutamento de jovens licenciados para ambas as magistraturas, agora na sua asserção inicial, pela proposta de eliminação da exigência de os candidatos ao ingresso no CEJ serem licenciados há pelo menos dois anos. Mas o primeiro esboço institucional de proposta de alteração põe claramente em causa o princípio da formação conjunta de juízes e procuradores e também, embora de forma menos confessada, a ideia de a formação dos magistrados não dever estar restringida às áreas técnicas do direito. Assim como é ensurdecedoramente silenciosa quanto aos critérios de recrutamento e selecção e à formação permanente.

Nesta minha participação neste encontro da MEDEL gostaria, tendo como pano de fundo o que até agora disse, de afirmar e desenvolver quatro ideias que me parecem essenciais para o debate, que não é apenas português.
Quatro ideias que visam contribuir para o recrutamento, selecção e formação de magistrados (juízes e procuradores) tecnicamente competentes, culturalmente esclarecidos e socialmente empenhados.


I
O recrutamento dos magistrados não deve ter como única via a selecção de jovens licenciados e esta não pode constituir uma simples reavaliação da aprendizagem universitária.
(vide post de 3 de Junho, acima referido)

II
A formação inicial dos candidatos à magistratura deve ser uma formação multidisciplinar e vivencial.


A meu ver, o processo de formação inicial deverá conseguir:
- formar magistrados que tenham uma boa compreensão da função social que vão exercer e do seu estatuto constitucional e profissional;
- que, no exercício das suas funções, sejam capazes de apreender e compreender os factos da vida e a complexidade dos problemas que são colocados à sua apreciação, de os tratar com competência técnica, alto sentido de responsabilidade e de serviço à causa pública da justiça;
- e cuja entrada no sistema de justiça seja, para este, um factor de inovação.


Este período, que é um período de formação profissionalizante que parte dos conhecimentos sobre as principais áreas do direito adquiridos na universidade para reflectir e experimentar a sua aplicação à vida, complementando-os com conhecimentos de outros ramos do saber igualmente essenciais para o correcto cumprimento das funções, deverá ter quatro componentes essenciais:

1º A abordagem dos assuntos ou temas definidos no respectivo currículo em função da avaliação das necessidades essenciais da prática judiciária, de uma forma multidisciplinar e multifacetada, que inclua a vertente estritamente jurídica, mas também o tratamento do facto, a sua compreensão e envolvência social, a análise das expectativas e dos efeitos da intervenção judiciária, a contribuição de outras disciplinas imprescindíveis ao seu conhecimento e abordagem;

2º O aprender a saber ser magistrado, que implica o conhecimento aprofundado e a interiorização do respectivo estatuto constitucional e profissional, assim como das normas éticas e deontológicas, bem como o conhecimento e a integração na actividade regular dos tribunais,

3º O aprender a saber fazer, através da simulação e experimentação da execução de peças processuais e de actos judiciários, como processo de construção de um método adequado de abordagem e tratamento dos factos e das questões jurídicas;

4º O conhecimento da realidade externa ao mundo das magistraturas, que envolve a realização de estágios junto de outras profissões forenses, de outras instituições e entidades do sistema de justiça, do mundo social e económico, e o contacto com outras realidades culturais.

Este modo de conceber a formação inicial implica que a docência do centro de formação não esteja restringida a magistrados, mas que conte no seu quadro com membros de outras profissões jurídicas, assim como com profissionais de outras áreas do saber.
A opção quanto ao modelo de formação tem na base uma opção quanto ao modelo de magistratura que se defende, a qual tem, por sua vez, subjacente um modelo de justiça.
Dois modelos se opõem hoje em Portugal: de um lado, o do magistrado funcionalizado, reprodutor das rotinas incrustadas e produzidas pelo próprio sistema, capaz de responder de forma esperada às questões que tem de decidir, sem espírito crítico e sem capacidade de iniciativa e de inovação; do outro, o do magistrado capaz de assumir o seu estatuto de independência e de autonomia, de compreender e de responder de forma culturalmente esclarecida aos desafios da actual complexidade social, com espírito crítico e capacidade de iniciativa e de inovação.
Opto por este segundo modelo.
As propostas institucionais que hoje se começam a conhecer em Portugal optam, embora de modo não confessado, pelo primeiro. O que, a vingar, constituiria um significativo retrocesso histórico.


Próximos posts:
III
A formação inicial dos magistrados judiciais e do Ministério Público deve ter períodos comuns de formação teórica e prática, bem como períodos de formação específica para cada uma das magistraturas.
IV
A formação permanente terá de ser entendida como um direito e um dever dos magistrados, e valorizada para efeitos de progressão na carreira.

4 comentários:

Anónimo disse...

Oh kamykase tanta seca institucional enjoa, bem que um kamykase podias ser um pouco menos reverencial... até porque o texto, ao que parece, é dum adjunto de uma direcção calamitosa pelo que o bla, bla gasto ainda enjoa mais.
Pelos verdadeiros kamykases contra os lambe-botas.

Anónimo disse...

Espera-se que isto não passe a ser uma instância de servidores anónimos de direcções

Kamikaze (L.P.) disse...

Oh caros anónimos, tal como o Direitos,andam tão desacualizados em informação!
Essa de a Direcção do CEJ (se é que isso existe de facto, sendo que na lei não consta) estar a arder é para rir!!! Então não sabem que um certo Cardeal do MP, agora arvorado em conselheiro da ainda Ministra da Justiça, se travestiu de Bombeiro e apagou o fogo em que já ardia o DIRECTOR do CEJ????? Para que tudo fique cada vez mais na mesma? E que há quem não aceite afogar-se no caudal das mangueiras e já tenha agido em conformidade???
Quanto aos lambe-botas estamos conversados...

E se não são capazes de digerir mais informação do que a do tipo tablóide, passem adiante!

Anónimo disse...

Que guerra de capelas é esta? entre blogs e lutas de magistrados (se é o que o sr. que dirige o CEJ é magistrado), já agora não se importavam de deixar de falar em código? o que é que a (de)formação tem a ver com isto?
O destinatário perplexo.