17 julho 2004

Anésia e Umbelina

Pelo teclado de L.C., o Incursões fez já referência à realização, em 21 e 22 de Outubro de 2004, em Coimbra, da II Bienal de Jurisprudência de direito da família e de direito dos menores, organizada conjuntamente pelo Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra, pelo Centro de Estudos Judiciários e pela Ordem dos Advogados, podendo ver o Programa e obter a ficha de inscrição (como participante ou "apresentante") aqui.

O que vos trago é um caso analisado na I Bienal de Jurisprudência Luso-Brasileira do Direito da Família, que se realizou em Setembro de 2003, no Rio de Janeiro. Um acordão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, de 08 de Setembro de 2000, cujo relator foi o Ministro Ruy Rosado de Aguiar.

O que se discutia:

Amílcar Moraes Sampaio, "homem de hábitos incomuns e que manteve vida concubinária dúplice por mais de trinta anos”, morreu. A quem pertence a meação dos seus bens?

O que se apurou e concluiu:

  • Amílcar viveu, com Anésia e Umbelina, separada e simultaneamente, um “concubinato por mais de trinta anos, um estado de vida que poucos e privilegiados casais alcançam em tempo de divórcio e costumes enfraquecidos”.
  • A essas uniões foram reconhecidos efeitos patrimoniais porque “o julgamento do sentido familiar da união deveria levar em conta o papel masculino preponderante, exigindo rigorosa avaliação da conduta incomum do solteirão convicto que, sem assumir os compromissos dos homens normais, dominou e dirigiu a existência de duas mulheres com perfis similares por quase três décadas”.
  • Amílcar “procedeu com as coisas do amor da mesma forma com que especulava no mercado de ações e imobiliário, ou seja, aplicando a estratégia do risco mínimo para as vantagens calculadas, pois que a existência de dois concubinatos marcados por aventuras (viagens, pescarias, etc.) e mistérios (festas familiares) permitiu-lhe usufruir dos melhores momentos das mulheres sem as responsabilidades do cotidiano matrimonial”.
  • Anésia e Umbelina estavam “ambas fragilizadas por casamentos infelizes e por dificuldades econômicas para a sobrevivência dos filhos”, sendo que Amílcar “era primo do ex-marido de Anésia e conhecido do de Umbelina”, tendo conquistado “sentimentos de afeição, fidelidade e solidariedade delas pela segurança financeira que prometeu e que cumpriu de forma parcimoniosa durante anos”.
  • “O sentido de entidade familiar de uma relação de pessoas deve, neste momento, ser extraído da atitude da mulher e não da opção de um homem de hábitos extravagantes”. Anésia e Umbelina acreditaram e viveram com ele “uma vida a dois”, com o “projecto de produzir uma comunhão de interesses recíprocos, com assistência mútua e conjugação de esforços”.
  • “Anésia e Umbelina foram concubinas de Amilcar” e “ambas – cada qual a seu modo, por óbvio – garantiram a estabilidade de Amilcar no plano emocional e econômico. As duas não são mulheres de grandes aspirações e nunca foram exigentes como as amantes caras que dizimam qualquer fortuna, contentando-se com a escolha ditada pelo companheiro rico e seguro nos gastos”.
  • “Encaixaram-se muito bem como únicos pontos de luz na vida nada brilhante de Amílcar e, sem dúvida, tornaram-se responsáveis pela conservação e progressão da riqueza dele, certamente a sua maior preocupação terrena”.
  • Ambas “desconheciam a ambiguidade do varão e não existe um ponto que permita atribuir a Anésia a condição de família e a Umbelina a pecha de eventualidade ou vice-versa”.

Decisão:

A meação do seu património “comporta divisão (em partes iguais) entre as duas mulheres que lhe foram solidárias com o tipo de vida que escolheu”.
“A conquista do direito à meação” decorre “de mais de trinta anos de vida more uxório, um tributo digno de peso pela participação na sociedade de fato”.
A decisão “é justa porque nivela o direito das mulheres que disputam a meação”.

É um resumo com omissão (por razões evidentes) das referências aos textos legislativos brasileiros. Para quê mais palavras?

Rui do Carmo

3 comentários:

Anónimo disse...

Estes juízes brasileiros estão a precisar é de vir aprender direito com os seus colegas do STJ, isso sim! Espero que os ilustres juristas que se esfalfarem a explicar, em douta e rigorosa linguagem de altíssimo recorte técnico, os fundamentos daquele acórdão há tempos aqui comentado - o do caso do homem que matou a mulher que se recusava a cumprir os seus deveres conjugais, fazendo ironia (agora de baixo recorte) por forma a justificar a compreensão devida ao pobre analfabeto que não "debitava" há mais de um mês, venham demonstrar que a argumentaação desta sentença brasileira vale o que vale um país do terceiro mundo.
Aposto que, com o poder de argumentaação de tão eminentes juristas, o Compadre Esteves mudava facilmente de opinião. É que não é por acaso que as sentenças só podem ser proferidas por juristas - aqui não há lugar a modernices populistas. O seu a seu dono!

Anónimo disse...

Tá visto que os ilustres juristas foram todos de férias e só blogam quando estão de serviço.
Mas poderia ao menos o autor do post explicar qual o seu pensamento sobre a decisão? diz que não são precisas mais palavras mas para um leigo como eu não é bem assim e já agora gostava de perceber. Obrigado.

Anónimo disse...

O autor do post só responde agora, exactamente porque não está ainda de férias.
Porque é que achei que não eram precisas mais palavras? Porque a situação e a argumentação pareceram-me suficientemente originais. E a minha intenção era apenas, a propósito da Bienal de Jurisprudência, dar a conhecer esta "pérola" da jurisprudência do mais alto tribunal brasileiro.
Por outro lado, qualquer comentário, a introdução de qualquer consideração jurídica, iria criar ruído na leitura livre do resumo do acordão. Pela mesma razão omiti a referência às normas legais do ordenamento brasileiro (que, de resto, poucos conhecerão).
É interessante debater esta situação da vida enquanto tal, ou seja sem a preocupação de a enquadrar no direito positivo.
Por tudo isto, a minha opinião é irrelevante!
Mas se a quer saber, fora de qualquer preocupação com o seu suporte legal, procurando despir-me da veste de técnico do direito, repito o que disse o primeiro comentarista: é justo!
Ass. RUI DO CARMO