02 julho 2004

UUUFFF!!! Do que eu me safei!!!

Há algum tempo venho recebendo, na minha caixa de correio electrónico, e-mails avisando que FAZER SEXO DÁ SAÚDE. Só agora, ao ler este recente Acórdão do STJ, de que aqui se deixam alguns excertos sequenciais, compreendi a reiteração no tema por parte dos meus correspondentes: toparam que vagueio até tarde na blogoesfera e, à cautela, avisavam-me, para prevenir qualquer eventualidade! E eu, a leste, mandava o correio todo para a reciclagem! Felizmente estava a salvo, graças às campanhas de alfabetização dos tempos do PREC. UUUFFF! Do que eu me safei!

Acórdão do STJ, de 27/05/04
Processo 04P1389; Relator: Pereira Madeira; Votação: unanimidade
Descritores: homicídio voluntário; homicídio qualificado; especial censurabilidade do agente

O Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo contra FJV, identificado nos autos, imputando-lhe a prática de factos integradores, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, p. e p., pelos artigos 131º e 132º/1 e 2, al. d), ambos do Código Penal, de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo art. 152º/1 e 2 do Código Penal, na versão dada pela Lei 7/2000, de 27 de Maio e de um crime de detenção de substâncias perigosas p. e p. pelo art. 275º/1, 3 e 4 do Código Penal "ex vi" art. 3º, al. c) do DL. nº. 207-A/75, de 17 de Abril.
Efectuado o julgamento foi a acusação pública julgada procedente, por provada e, em consequência, foi o arguido condenado, pela prática em autoria material de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º e 132º/1 e 2, al. a) do Código Penal, na pena de dezoito (18) anos de prisão; pela prática em autoria material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º/1 e 2 do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão; e pela prática em autoria material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo art. 6º do DL. nº. 22/97, de 27 de Junho, na pena de um (1) ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido de harmonia com o disposto no art. 77º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de vinte (20) anos de prisão.
Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido para a Relação do Porto, que, porém, negando-lhe provimento, confirmou inteiramente a decisão recorrida da 1ª instância.
Ainda irresignado, recorre agora o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça (…)
Analisadas todas as circunstâncias que rodearam a prática do crime de homicídio em causa nos autos, nomeadamente, que:

- o arguido era casado com a ofendida;
- dessa união nasceram três filhos, que tinham, à data dos factos, 10, 7 e 6 anos de idade;
- o arguido decidiu pôr termo à via daquela;
- pegou na sua arma de caça e com a falecida RMMT confinada ao espaço do quarto de dormir de ambos, apontou-a na direcção da mesma e efectuou dois disparos, atingindo a RMMT nos pulmões, coração, região hepática e na perna esquerda;
- a arma encontrava-se no quarto do casal e foi carregada com dois cartuchos, pelo arguido, antes de efectuar os disparos;
- os disparos foram efectuados a uma distância de cerca de um metro e meio;
- um dos disparos teve uma trajectória da esquerda para a direita e atingiu a vitima junto da omoplata esquerda (ou seja, foi efectuado quando a ofendida se encontrava de costas para o arguido);
- os disparos foram feitos com cartuchos zagalote;
- no momento em que foram efectuados os disparos os filhos de arguido e vitima encontravam-se em casa;
- os filhos RTV e MTV encontravam-se na cozinha e GTV que tinha seguido os seus pais encontrava-se à porta do quarto do casal, tendo assistido à prática dos factos;
- ao ouvir os disparos, RTV dirigiu-se ao quarto dos pais viu que a mãe se encontrava caída no chão e, a correr, foi chamar os avós, gritando que o pai tinha morto a mãe;
- o arguido agiu por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da ofendida;
- o arguido agiu de surpresa e sem que a vitima se pudesse defender;

Afastada a agravante-padrão avançada pela acusação - da alínea d) do nº. 2, do artigo 132º do Código Penal - a conclusão do tribunal de 1ª instância, avalizada pelo da Relação, é, assim, pela verificação do chamado homicídio qualificado atípico, isto é, homicídio qualificado sem recurso a nenhuma das agravantes padrão previstas no artigo 132º citado.
Importa, porém, reter como já aqui tem sido advertido em muitos outros casos, que o recurso àquela figura jurídica há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, "é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados ....
sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação parlamentar em última instância, que tem o legislador penal" (3-4), e que a legitimação para a sua aplicação assentará in extremis, na consideração de que "a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado" e, que, "com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico" (5).
(...)
Estamos, assim, perante um caso grave de homicídio, mas em todo o caso, de homicídio simples, com previsão apenas no artigo 131º do Código Penal, ou seja, punível com uma pena que vai de 8 a 16 anos de prisão
No doseamento concreto, haverá de ter em conta nomeadamente as circunstâncias de cariz agravante que se enunciaram, não esquecendo ainda assim as [poucas] atenuantes de que o arguido deve beneficiar, e assim, por um lado, que é analfabeto e, também, que a vítima, sem que se saiba porquê - ignorância mais uma vez favorável ao arguido em sede de valoração da prova - «após finais de Março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um contrato de trabalho, (...) passou a não querer manter relações sexuais com ele», circunstância, que, pelo menos, permitirá a afirmação de que nem só do lado do arguido terá havido violação dos deveres conjugais, e pode até ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a (in)fidelidade dela.
Tudo ponderado, tem o Supremo Tribunal como adequada às circunstâncias enunciadas do caso a pena de 15 anos de prisão pelo crime de homicídio.
Atendendo aos factos e à personalidade do arguido, em cúmulo jurídico com as penas parcelares pelo crime de maus tratos supra referido (2 anos de prisão) e detenção ilegal de arma de fogo (1 ano de prisão), em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nº. 2, do Código Penal, fixar a pena única conjunta em 16 anos de prisão.
(...)
Lisboa, 27 de Maio de 2004
Pereira Madeira, Santos Carvalho, Rodrigues da Costa, Quinta Gomes

Nota - data da prática dos factos: 12 de Maio de 2002

30 comentários:

Primo de Amarante disse...
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Anónimo disse...

Não falo, não comento, não quero ser desleal,não quero inftingir o tal direito de reserva. E será só este.Porquê distinguir um entre milhares.
Dirão, pois é, os juízes são cada vez mais novos. No Supremo...

Kamikaze (L.P.) disse...

Pois é, a tal juventude incompetente e inexperiente da 1ª instãncia desta vez contaminou a Relação.
Felizmente, no STJ, lá estava a reserva da nação, com a sageza dos mais velhos e experientes, com as suas mundividências bem temperadas por uma profunda compreensão dos valores socialmente dominantes e protegidos nesta nossa sociedade dita moderna e democrática.
Compreendo a sua reserva, caro Anonymous, e registo o comentário que não o querendo ser, é.

Este Acórdão já anda nas bocas do mundo - a comunicação social já decobriu "o filão".
Não gosto de generalizações, sempre redutoras e injustas para muitos.
Mas parece-me que o dito pode constituir um bom ponto de reflexão para quem quiser entender a(s) raíz(es) dos genes do busílis de que falou Noronha do Nascimento.

Kamikaze (L.P.) disse...
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Anónimo disse...

Caros juristas, digam-me uma coisa: o facto invocado no acordão, que tanto está a escandalizar as gentes, será irrelevante na determinação da medida concreta da pena? Acham mesmo? Acham mesmo que devia ser desconsiderado à luz do artº 71º Código Penal? E se não puder(ou não dever) ser desconsiderado, é um facto que depõe "a favor do agente ou contra ele" (cito a lei)? Em que ficamos?
Ou seja: o problema estará na consideração de tal facto ou na forma desajeitada e pouco hábil como é invocado e tratado no acordão?
Só faço este comentário porque estou entre insignes juristas ... e gistava que me esclarecessem!!

Anónimo disse...

Na página do STJ li.

6.21. O que levou o arguido, enfim, a superar, em relação ao filho, as contra-motivações ético-sociais decorrentes da sua proximidade biológica e familiar, não foi, pois, um «especial conteúdo de culpa». Com efeito, tal superação, se bem que implicando uma «agravação (gradual/quantitativa) do conteúdo do ilícito», não suportará uma especial «agravação da culpa», pois que não foi ao nível da perversidade moral ou da corrupção da alma (mas da «perigosidade psicopática e/ou sociopática) que o arguido documentou, com essa superação, «qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas»: «Dada a rigidez cognitiva revelada e o grau de impulsividade poder-se-á concluir estarmos perante um indivíduo com certo grau de perigosidade» (conclusões do exame mental de fls. 211).

6.22. E, como já se viu, não é um juízo de perigosidade que deve formular-se para qualificar o homicídio. É verdade que «a qualificação de muitos crimes disfarça sob o discurso da maior ilicitude razões essencialmente preventivas». Mas, na qualificação do homicídio, «a lei usa uma disjuntiva (censurabilidade ou perversidade) incompatível com a articulação de culpa e prevenção nos termos em que nosso direito penal as aceita, que são de acumulação e não de disjunção». «Coerente com o ser um direito penal do facto, o nosso Direito não se enreda pela ideia de perigosidade e utiliza o princípio da culpa na construção do homicídio agravado» (29).

6.23. Enfim, e uma vez que «um tipo de culpa e de medida da pena não se aplica, ainda que o agente realize a circunstâncias qualificadora, sempre que o comportamento não revelar censurabilidade ou perversidade agravadas» (Maria Margarida Silva Pereira, ob. e loc. cits.), é de concluir - correspondendo, aliás, ao apelo da melhor doutrina para «um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas» (Comentário, I, 26) - que a conduta do arguido integra, simplesmente, um crime de homicídio (não qualificado) p. p. art. 131.º do CP.

7. A PENA

«Sem prescindir, o tribunal calculou exageradamente a dosimetria penal a aplicar ao arguido, negligenciando as condições pessoais e sociais do ora recorrente. A interpretação correcta obrigava à ponderação pelo tribunal do circunstancialismo exposto, de modo à aplicação da pena mínima aplicável ao ilícito em questão, violando desta forma o preceituado nos art.s 70° e 71° do C. Penal»

7.1. Ante a «realização dos elementos constitutivos do tipo orientador», resulta do facto, apesar de se não verificar concomitantemente o correspondente «tipo de culpa», «uma imagem global agravada».

7.2. A penalização do facto há-de, porém, procurar e achar-se, na ausência do tal «especial conteúdo de culpa» (e, até, por força do princípio de que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - art. 40.2 do CP), no quadro punitivo traçado pelo art. 131.º do CP.

7.3. Mas, «não havendo uma secante entre a pena do art. 131.º e a do art. 132.º, mas uma necessária relação de complementaridade» («pois um "não tipo" - o art. 132.º - é por definição destituído de moldura penal própria»), a maior ilicitude decorrente da sua paternidade do arguido em relação à vítima e a perigosidade que ele, com o seu crime, revelou sugerem que o âmbito da busca da pena concreta se circunscreva ao espaço (de 12 e 16 anos de prisão) - «singularidade deste Código» - de «aplicação cumulativa de uma pena de média gravidade e de gravidade superior».

7.4. A pena - recorde-se «não serve "para dar vazão a sentimentos comunitários de castigo, repugnância e vingança social": é sabido que a satisfação destes sentimentos em nada auxilia (bem pelo contrário) a prevenção; e que, por outro lado, a penitenciária é lugar de todo em todo inadequado para os ter em conta» (Comentário, I, 46)

7.5. Tendo em conta, enfim, a culpa do agente (de algum modo, mitigada pela sua «deficiência mental ligeira» e pela «perturbação paranóide» da sua personalidade) (29) e as especiais exigências de prevenção (decorrentes, por um lado, do grau de ilicitude do crime e, por outro, da especial perigosidade do arguido), as consequências do crime no que a ele próprio respeita (pois que não pode esquecer-se que o arguido, matando-o embora, perdeu o seu filho mais novo e o seu único filho rapaz), as suas condições pessoais («Vivia para o trabalho, que prezava acima de tudo; dedicou-se também à construção civil, após regressar do estrangeiro; trabalhava como comerciante, explorando um supermercado, com a mulher e os filhos, e transaccionando cereais, o que fazia designadamente na feira de Braga, actividade a que se dedicava sozinho; fora do seu ambiente familiar, era conhecido como pessoa severa, mas trabalhadora; desenvolveu contactos com inúmeros comerciantes da cidade de Braga, seus fornecedores, com quem manteve boas relações») e a sua conduta anterior ao facto (despótica no âmbito familiar mas, a nível social e profissional, de inteira dedicação ao trabalho), a pena correspondente será de fixar, naquele espaço de «sobreposição relativa das penas do art. 131.º e do art. 132.º», em 15 (quinze) anos de prisão.

Primo de Amarante disse...
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Primo de Amarante disse...
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Anónimo disse...

Ser analfabeto e não ter acesso ao corpo da esposa, por esta se recusar durante um mês e meio, podem ser consideradas atenuantes para o arguido, que mata a mulher.
Não se censura o acórdão por valorizar ou não tais circunstâncias.
Constata-se que quatro ilustres Conselheiros, vivem num mundo,em que é normal que tais factos, atento aquele crime, devem ser considerados factores atenuativos na pena que aplicaram ao arguido.Nada mais.

Anónimo disse...

Começamos a entender-nos.
O facto tinha de ser considerado!
Quanto ao que significou como "atenuante", veja-se que a pena máxima aplicável ao crime é de 16 anos de prisão (artº 131ºC.Penal)e o acordão fixou a pena de 15 anos para este crime. Pouquíssima importância, portanto!
Há uma diferença quanto ao grau da culpa entre quem age na existência deste facto e quem age sem que ele se tenha verificado - não será assim? Se assim for, só por isto o seu conhecimento faz sentido - para diferenciar condutas e, necesssariamente, a pena que lhes corresponde.
O atraso da sociedade em que vivemos, em que estes factos acontecem...é outro problema!
Insisto: não será que o erro do acordão é não ter sabido explicar a operação jurídica que fez, prestando, aí sim, um mau serviço à compreensão pública das regras jurídicas e à conformação dos cidadãos com a lei,para o que a fundamentação das decisões também deve preocupar-se em contribuir?

Anónimo disse...

A legitimidade de considerar o analfabetismo e maxime de considerar o "comportamento omissivo" ou "comissivo doloso" em não satisfazer o marido, são dois factos que, enquanto atenuativos, resultam de uma presunção factualmente não demonstrada, que o arguido distorcia o comportamento da sua esposa por ser analfabeto e outra colide com os direitos fundamentais da mulher, mesmo casada, de não querer ter relações sexuais com o esposo.Discutível é haver, hoje, um caldo de cultura judiciária que aceite estes factos como atenuativos.
Questão, outra, não aflorada coloca-se a outro nível, qual seja o da qualificação, ou não, do crime de homicidio. A jurisprudência faz-se para ser lida, comentada, e não, apenas, para ser citada.

Primo de Amarante disse...
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Primo de Amarante disse...

O compadre está baralhado. A lei subordina-se a valores ou são os valores que se subordinam à lei?!... A jurisprudência é a aplicação de um modo de entender a lei ou dos valores que a configuram?!... E não são os valores que orientam juízos e servem para "medir" comportamentos? Como entender “deveres conjugais” fora dos valores que fazem a união de duas pessoas? Será que pode existir o dever de ter relações sexuais com quem se detesta?!... O que é uma violação sexual?!... O que é a prostituição?!... Será que a sexualidade é uma espécie de ginástica sueca?
Estou baralhado com certa jurisprudência. Sou do tempo em que, em vez de se usar a expressão “fazer sexo”, falava-se em “fazer amor” (faz amor e não a guerra, dizíamos nós!)

Anónimo disse...

Posso extrair a seguinte conclusão: fazer zoom sobre uma parte de um acordão distorce a imagem da paisagem em que aquela se insere e, portanto, prejudica a sua compreensão?
Mesmo que tal operação seja politicamente correcta.
A "pressuposição" é, de resto, uma estratégia enunciativa desadequada à análise jurisprudencial.

Primo de Amarante disse...

Caro anónymous: o zoom não se adequa ao princípio hermeneutico da interpretação: o princípio do holismo que nos diz "tudo está ligado a tudo". A parte não pode ser verdadeira, independentemente do todo; nem o todo, independentemente das partes que o compõem.

Anónimo disse...

Portanto, está de acordo comigo!

Primo de Amarante disse...

Lendo melhor, plenamente. Os blogs servem, entre outras coisas, para nos pôr a pensar e é óptimo que assim seja.

Anónimo disse...

O nosso direito penal é um «direito penal de culpa»: a medida da pena, por maiores que sejam a exigências de prevenção (ou defesa social), nunca pode ultrapassar a medida da culpa.

Tal como a justiça divina – infinitamente justa mas infinitamente misericordiosa – também a justiça humana, para ser (minimamente) justa, terá, ante a complexidade, fragilidade e insondabilidade da alma humana, que a observar (e tentar compreender) com a maior abertura de espírito e humildade intelectual. Sem moralismos nem preconceitos. Nem espírito de vindicta. Nem a veleidade (paternalista e populista) de corrigir os costumes.

Ao homicídio corresponde a pena de 8 a 16 anos de prisão. E só em casos excepcionais, em que a gravidade do ilícito (aferida por determinados índices) revele uma especial censurabilidade ou uma especial perversidade, é que a pena do homicida pode ser «procurada» no escalão superior (de 12 a 25 anos).

No caso, a 1.ª instância rejeitara todas as «explicações» do arguido e, tão rasamente o fizera, que o crime, assim (aparentemente) imotivado, correria o risco (não fosse a intervenção do Supremo) de se transformar, artificialmente, numa gratuita perversidade. Com efeito, a 1.ª instância não se convenceu (apesar de a única «testemunha» do crime, o próprio autor, o ter asseverado):

- de que «o arguido notara que havia sinais de borracha de botas e sapatos na parede exterior e no ponto de acesso aos quartos de dormir»;
- de que, nesse dia, no quarto de dormir, se baixara e vira umas cuecas da ofendida, cheias de terra, ao lado do guarda fatos»;
- de que «ao tirar as cuecas, viu que ali havia uma caixa de preservativos aberta e quase vazia»;
- de que «o arguido e a ofendida nunca haviam comprado qualquer carteira de preservativos»;
- de que «nunca haviam tido relações sexuais com preservativos»;
- de que «a mulher [acabara por lhe] confessara que lhe era infiel e que até tinha feito um aborto por relações sexuais tidas com um vizinho», que «não queria viver mais com ele» e que «já não gostava e tinha nojo dele».

Nem sequer, apesar da «verosimilhança» da alegação (tanto mais que a dúvida beneficia o acusado), de que «o arguido pegara na arma e disparara em direcção à ofendida porque se sentira humilhado, diminuído, violentado, provocado, desesperado e perturbado».

Ora, a motivação do arguido terá sido, sem dúvida (razoável), o «ciúme». Mas o colectivo (de 1.ª instância) terá visto apenas a «árvore» (a «recusa de sexo») e não a floresta (a «humilhação» do marido ex-emigrante ante a constatação dolorosa do «nojo» que, afinal, infundia – ou, com a sua ausência, passara a infundir - à parceira).

Obviamente que «o homicídio em causa» nem por isso deixou de constituir «um acto criminoso e, até, bárbaro», como o Supremo expressamente reconheceu. E tanto assim que puniu o autor com 15 anos de prisão (quase a pena máximo do homicídio comum). Mas negou, por fundamentadas razões de índole técnico-jurídica, a qualificação que a 1.ª instância atribuíra ao homicídio. E, (até) por isso, recusou os «18 anos» que o colectivo, na (afinal errada) perspectiva de um homicídio qualificado, sugerira.

Primo de Amarante disse...

Fico agradecido pela longa explicação. Penso que vem de encontro ao que eu julgo dever ser o "fazer justiça". Mas, como já deve ter entendido, não sou jurista. Há uma reflexão interessante de Ricoeur sobre a relação entre o legal, o justo e o bem, na qual se situa o problema da justiça (em termos da sua aplicação)no plano da virtude e não do formalismo legal. É essa sensibilidade (sageza) que me parece fundamental desenvolver na formação de quem envereda por essa profissão.

Anónimo disse...

Trata-se de um acórdão importante e que faz a correcção de um injustificado impulso punitivo da primeira instância e do tribunal da relação. Em casos idênticos, é sempre mais "fácil" e "popular" responder com esse impulso. É evidente que nos crimes de corrupção o fenómeno processa-se ao contrário. Não há impulso punitivo mas vertigem absolutória. No Conflito das Interpretações, do Paul Ricoeur, há um capítulo chamado Interpretação do Mito da Pena que, creio, ajuda a compreender o acórdão, ainda que seja possível que os autores do acórdão não o tenham lido. Talvez, um dia, o CEJ convide o Compadre Esteves a falar sobre estas coisas.

Anónimo disse...

Felicito-vos por este debate.
Debate que é possível ter aqui, mas não, infelizmente, na comunicação social, na qual a distorção do decidido é notícia, mas não a sua clarificação.
Os blogs, parecendo ter imprimido ao tempo da informação uma rapidez ainda maior do que a dos media (se é que já o não são também!?), permitem, contudo, fazer paragens de reflexão, para os que não gostam de andar sempre pelas auto-estradas ou nos alfas directos, desde que incluam, como este, a liberdade de comentário.
Quando me dirigi, há dias, aos "caros juristas", fi-lo com receio - infundado, vejo agora! - de me ver de imediato imergido em superficialidades emotivas. Mas não, o Incursões deu aqui uma prova de maturidade e da qualidade de muitos dos que conseguiu atrair para o seu espaço. A qualidade dos residentes já eu conhecia!
Felicito-vos e espero que mantenham esta abertura ao comentário de qualquer um.
Vinha aqui de vez em quando.
Acho que vou ficar!
Deixem-me mandar daqui um abraço forte ao Gastão.

Primo de Amarante disse...
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Primo de Amarante disse...
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Primo de Amarante disse...

Chama-se a isto, ancorar a razão comunicativa (não sei quem são os anonymous) num processo de sentido, onde ninguém impõe a sua verdade e onde todos procuram comunicar, tendo presente que não há comunicação sem um "ethos"; isto é, sem a solidariedade nos princípios. É isso que se manifesta no debate deste blog, o que é (na expressão que me está a jeito) sedutor.Ninguém quer enganar ninguém e, por isso, não se desenvolvem pensamentos de conveniência (como o que começa por dizer "isto é assim"). Não se separa o mundo da vida do mundo da razão, como faz o racionalismo positivista.

Anónimo disse...

Compadre Esteves e Anonymous, Parabéns pelo exemplo de troca de razões, e pelo esclarecimento de quem beneficiou com a sua leitura.
Já agora uma pergunta, O(a) Kamikase do «Uff...» é jurista populista ou só populista?
O Incursionista.

Primo de Amarante disse...

Caro anonymous Dois (?). Não conheço a Kamikaze, mas se reler tudo o que a nossa "comadre" blogueira tem escrito suponho que configurará a mesma ideia que eu: uma pessoa com o sentido da ironia, de convicções e de causas. Indispensável a este blog.
Mas a Kamikaze não precisa que a defendam. Estas minhas considerações foram feitas mais pelo imperativo do dever de justeza (colocar uma concepção que, no meu ponto de vista, parece mais ajustada ao modo de entender o outro)do que com outra razão.

Anónimo disse...

Desculpe o desabafo, caro Incursionista, mas se o debate tivesse seguido o sentido e os termos da sua pergunta, decerto não teria alcançado a elevação que lhe está a ser consensualmente reconhecido.

Primo de Amarante disse...

Esteja à vontade, mas confesso que não percebo aonde quer chegar. Limitação minha, naturalmente.

Unknown disse...

Encontreiesse blog por acaso, depois de uma busca aos elementos constitutivos do crime de maus tratos a cônjuge. È possível que troquemos correspondência? Meu mail é p.r.i.e_comunique-se@hotmail.com.