14 setembro 2004

Tema recorrente

Por volta de 1935, o deputado José Cabral apresentou um projecto de lei que visava o secretismo da maçonaria. Um excerto da resposta de Fernando Pessoa: “A maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano – isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage, quanto à atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a Ordem é a mesma sempre em todo o mundo. No terceiro, a maçonaria – como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa. Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só ideia – a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. (…) Tudo quanto se chama «doutrina maçónica» são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. (…) Nenhum político ocasional de nenhuma obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento que a Maçonaria não criou.
Resulta de tudo isto que todas as campanhas anti-maçónicas – baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente – estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus actos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação? Quer o sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma perfeitamente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos Albigenses e dos Piemontenses?...”

In “ Diário de Lisboa” nº 4.388 (4 de Fevereiro de 1935).Suponho que a editora “Inquérito” editou o texto na íntegra.

5 comentários:

josé disse...

Escrevi um postal na Grande Loja QL, no qual destaquei o elemento iniciático; o fraternal e seus reflexos e o tal dito humano, que se reflecte no facto de haver iniciados que não o são verdadeiramente ( não estou a ver o Mário S. ou o Almeida S. a reflectir sobre os mistérios insondáveis da existência). Tenho por isso dificuldades em o distinguir do fraternal...

Ainda assim, em 1935, estava no seu apogeu o Salazarismo, o qual, como julgo saber, não apreciava por aí além, o secretismo esotérico.
Assim, o ponto essencial das análises e que me parecem estar de alguma forma resumido no excelente texto de E.Cintra Torres, está na actual versão do que é verdadeiramente a maçonaria.
Como organização espiritual, nada tenho a opor.

Porém, numa sociedade democrática, aberta ao princípio da transparência e de sociedade aberta, a maçonaria e outras sociedades secretas, fazem algum sentido?!!
Fazem apenas um: serem mais um meio de conquista e principalmente de manutenção de poder.É ESSA A QUESTÃO!
E para exemplificar, na prática, nem é preciso procurar muito: basta ir ao portal do Governo e fazer um corridinho nos elencos dos governos constitucionais, desde o 25 de Abril. Para além do mais, o site até tem a série de fotos das respectivas efemérides.
Basta olhar e ver. Para mim, é uma vergonha, tanta coincidência!

Anónimo disse...

Que se organizem como lhes der na real gana. Estão no seu direito. Mas também não percebo essa necessidade insondável de esconderijos. Palavra que não percebo.

Primo de Amarante disse...

Para além das contribuições dadas pela maçonaria na elaboração dos direitos humanos, referia dois factos: Na Bélgica, o Grão-mestre da maçonaria é o reitor da Universidade Livre. Tem honras de Estado e a ordem maçónica que representa, no seu funcionamento institucional, mantém as mesmas regras de discrição da maçonaria de tradição inglesa. Perelman, filósofo e jurista professor dessa Universidade, numa das suas palestras, referiu que o seu trabalho de reflexão sobre a ética do direito se devia à disciplina da ordem maçónica. Os filantropos que estiveram na origem da ética utilitarista eram mações e são interessantes as suas posições sobre a ética de Estado: uma, defende que sob o ponto de vista ético, o Estado deve preocupar-se com a maximização da felicidade e, por isso, a criação de condições que permitam a produção de riqueza constitui o objectivo fundamental das políticas sociais. Outra, sustenta que o Estado ético deve preocupar-se com a minimização do sofrimento e, por isso, a eliminação da miséria e da dor deve ser o objectivo fundamental das políticas sociais. Consideram que as políticas direccionadas exclusivamente para o incremento da riqueza geram exclusão social e pobreza.
Não estando filiado em nenhuma maçonaria, não me parece que seja correcto lançar no caixote do lixo da história contribuições fundamentais para o progresso da humanidade dadas pela maçonaria e que marcam mais do que a transgressão do “amiguismo maçónico”.

Manuel disse...

deve ser do tempo, ou de mim, não levem a mal, mas a referência à Bélgica só me faz rir... e rebolar a rir...

Quanto ao resto é quase como dizer que não se pode falar de corrupção de futebol porque os clubes são quasi IPSSs, e o FCP foi campeão Europeu, ou de Pedofilia na Igreja porque é a Igreja (esse argumento quase que colava nos EUA)...

Primo de Amarante disse...

Caro Manel: eu é que não percebo as suas ilacções. Nada do que eu referi poderá levar a fazer esses nexos (falaciosos). De qualquer forma, o que eu quis referir foi um pouco isto: acontece com a maçonaria um pouco o que acontece com o marxismo. Rapidamente se esqueceram os contributos positivos que trouxeram. Mas não quero polemizar sobre esta questão.
O que escrevi sobre a Belgica e a Universidade Livre foi o que directamente ouvi a quem ali estudou e conheceu Perelman. Como sabe, a Universidade era sobretudo frequentada por perseguidos políticos e, por isso, estava vocacionada sobretudo para áreas humanisticas.
Já agora corrijo um erro que dou conta no que escrevi: deveria escrever macons e não "maçãos".