26 setembro 2004

Um novo ciclo na vida do PS

Um novo ciclo na vida do PS pode surgir, não tanto pelas ideias (muito retóricas e generalistas) que José Sócrates imprimiu ao debate, mas pela dinâmica criada com a nova forma de eleger o Secretário-Geral deste Partido.
Três desafios, em nosso entender, se vão colocar ao novo Secretário-Geral do PS: o primeiro é, desde logo, saber se, em lugar do mérito e da coerência, continuará a ser critério de escolha partidária o perverso vício de pagar eventual arregimentamento de votos com contrapartidas no aparelho de Estado (lugares nas listas para deputados, nas cotas das mulheres para “namoradinhas”, nas candidaturas às autarquias, etc. etc.), mantendo uma espécie de vampirismo clientelar na mesa do orçamento do Estado; o segundo, é saber se José Sócrates é capaz de estimular as condições que permitem o aparecimento de lideranças de mérito a nível regional e local, que saibam ouvir, debater problemas e assumir na política uma ética da responsabilidade. Hoje, a nova ideologia da manipulação promovida pela política-espectáculo é falar em “modernidade”, “convicções” e “valores”. Mas, estes conceitos nada significam se não tiverem consequências e não forem avaliados por uma ética da responsabilidade, a que permite saber quais são os efeitos práticos para uma boa governação (a que promove a coerência, aumenta a felicidade e diminui o sofrimento) desses mesmos conceitos. O partido está cheio de verborreicos que despejam palavras encantatórias, mas não explicam como as traduzem na prática. O terceiro desafio prende-se com o tão apregoado conceito de “esquerda moderna”. Nunca percebi essa classificação. Ser-se de esquerda, hoje, como no passado, é tomar o “homem como fim último e nunca tratá-lo como um meio seja para o que for”, é ser solidário, generoso, coerente, aberto ao confronto de ideias. Por isso, o projecto de esquerda é combater o oportunismo, defender a solidariedade social, promover a democracia participativa, reconhecer o exercício da cidadania como um capital social mobilizador do empenhamento em causas, sentir que a pobreza, a miséria e o sofrimento privam o homem da sua dignidade, constituindo uma doença social que é preciso combater. Por isso, a máxima de uma boa governação de esquerda é premiar o mérito da competência solidária e responsável, desenvolver estratégias que possam minimizar o sofrimento humano e, em caso de este ser inevitável, distribui-lo o mais equitativamente possível, por forma a que os que mais sofrem e são mais pobres não sejam os mais penalizados. Este conceito de esquerda é tão moderno como é tão antigo. Tiveram-no os que se sentaram no lado esquerdo do hemiciclo da primeira Assembleia Constituinte da Primeira República francesa (por isso as suas ideias receberam o nome de esquerda – o lugar onde estavam) e se opuseram aos que defendiam os privilégios das linhagens, das hierarquias e das mordomias.
Será que o novo Secretário-Geral do PS vai colar-se nesse “lugar” e responder a estes desafios ou continuará na senda do pensamento convenientemente correcto e que promove o ilusionismo da política espectáculo?!...
Conhecendo nós o que tem sido a prática de alguns dos seus mais fervorosos apoiantes, ficamos na expectativa. Oxalá que o consiga!

3 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Revejo-me em tudo o que LC, de forma tão clara, escreveu sobre o que é ser esquerda, ontem e hoje.
Quanto ao mais, concordo com a análise, mas não sei como ter ainda qualquer expectativa. Não é pessimismo, é lógica. Triste.

Kamikaze (L.P.) disse...

Pois, lapso! O curioso é que eu li mesmo LC no final do post. Uma partida do meu subconsciente, que não esperava tais expectativas (ainda que assaz moderadas)por parte do nosso compadre! E esta, hem?! :)

Primo de Amarante disse...

O Freud ensinou-nos a compreender tudo isso!