Segundo o Diário de Notícias de ontem, a transferência dos processos da justiça militar para os tribunais comuns, decorrente da recente entrada em vigor do novo Código de Justiça Militar, está a provocar um conflito de competência entre juízes e magistrados do Ministério Público.
Dá-se aí conta da opinião do porta-voz do Conselho Superior da Magistratura (CSM), Antero Luís, que admite que se está perante «um problema grave» que terá de ser resolvido em sede de recurso. Segundo ele, em despacho de 14 de Setembro, o vice-presidente do CSM, Santos Bernardino, definiu que os processos em instrução que transitaram da justiça militar seriam da competência dos respectivos juízes de instrução. Entre outros argumentos, Santos Bernardino apoiou-se no n.º 9 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, o qual estabelece que «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Ou seja, como no anterior Código de Justiça Militar, os processos estavam sob a alçada de um juiz de instrução, os mesmos não podem transitar agora para a esfera do MP, refere Antero Luís.
A ser verdadeira a notícia, e é sob reserva o que se diz a seguir, trata-se de uma visão com um só olho, à Moshe Dayan, quando o que se impõe é uma leitura multifacetada da Constituição, à maneira de um qualquer insecto, desses que vêem para todos os lados.
Não basta ler isoladamente o n.º 9 do artigo 32.º da Constituição. Impõe-se fazê-lo articuladamente, por exemplo, com o n.º 5 do mesmo artigo, que diz que o processo criminal tem estrutura acusatória, e, sobretudo, com o artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, que diz que é ao Ministério Público que, com autonomia, compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.
É preciso ter presente ainda que a instrução de que falava o revogado Código de Justiça Militar nada tem a ver com a fase de instrução tal como hoje em dia é entendida.
E, já agora, talvez não seja despiciendo ler o que diz a nova lei – sempre, é claro, à luz da matriz constitucional –, segundo a qual as disposições processuais do [novo] Código de Justiça Militar são de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro), não se podendo dizer que a conversão da anterior “instrução”, dirigida por um juiz, na correspondente fase do actual inquérito, sob a direcção do Ministério Público, seguida, eventualmente, da moderna instrução, da titularidade de um juiz, limita os direitos de defesa do arguido.
O que a Constituição seguramente não diz é que possa ser o Conselho Superior da Magistratura, ou um seu qualquer membro, a regular administrativamente a competência para instruir os processos militares em que não foi ainda exercida a acção penal, e, muito menos, que essa regulamentação o possa ser sem publicidade, como que à socapa.
Como não diz que os juízes das secções criminais de instrução militar, contra o que há de mais elementar, possam ser colocados clandestinamente nos respectivos tribunais. Aí, sim, pode haver verdadeira limitação dos direitos de defesa do arguido, que tem direito a um juiz natural.
Em suma (a ser verdadeira a notícia): o senhor vice-presidente do CSM criou uma grande “sarilhada”. Apareça quem a deslinde.
21 outubro 2004
"Sarilhada"
Marcadores: L.C.
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1 comentário:
Manifestamente, o "poder judicial" pretende estender o poder circunscrito constitucionalmente de dizer o direito nos casos concretos, processualmente definidos, a outras áreas, mormente as governativas e de administração pública. Basta ver com atenção os fenómenos e epifenómenos dos últimos meses.
Se há alguém que precisa urgentemente de formação constitucional, acelerada e básica, parece que será quem despertou agora para a avidez desse poder efémero, apetecido mas que lhes devia ser estranho: a ASJP e o CSM!
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