23 outubro 2004

Voltando ligeiramente à questão de Derrida

O texto que segue tem como pano de fundo uma discussão entre colegas, via Internet, mas em circuito fechado, em que, a propósito da morte de Derrida, se afirmava, «grosso modo», a possibilidade de «desconstrução» de uma decisão feita a partir de dentro, nomeadamente através de notas de rodapé, como acto auto-assumido de «abertura» e mesmo de «relativização». Assumo-o aqui, a pedido de colegas, com todas as imperfeições que possa conter (e acho que contém). Imperfeições que são fruto do imediatismo próprio de um «chat», não obstante as citações do texto, que fiz por recurso também imediato a livros que tinha à mão, parecerem desmentir essas características.


Voltando ligeiramente à questão de Derrida.
A «desconstrução» do texto, a desmontagem dos seus mecanismos, vem claramente da época do estruturalismo, embora seja um conceito «cunhado» por Derrida. Então, era de bom tom entre os intelectuais, sobretudo os de raiz marxista, falar em «desconstrução». Aliás, um dos «textos» célebres de Derrida, datado de 1993, tem como tema central o marxismo – o texto marxista de uma forma geral – e chama-se «Spectres de Marx». «Desconstruir» um texto (e texto, aqui, não está empregue em sentido literário, ou seja, como termo que tende a substituir-se a «obra literária», que foi, enquanto tal, posta em causa pelos estruturalistas), significava desmontar a ideologia dominante que, dentro do «texto», se erigia sob a forma de verdade expressiva, visto que a ideologia sempre tentou passar como expressão da verdade universal. Isto é, uma forma de «naturalizar» a própria ideologia. Assim é que todo o trabalho de um Roland Barthes, por exemplo, se cifrou em desmontar incessantemente a ideologia dominante que capciosamente se escondia nas malhas do texto, da sua tessitura (texto vem de «tecer»). Daí essa fabulosa obra que é «As Mitologias», que desmonta o sistema de comunicação, ou seja, na terminologia semiológica de Barthes, tudo aquilo que se apresenta como «signo», desde os anúncios publicitários às linhas do Citroen-boca-de-sapo, aos textos literários e ao discurso de uma sentença (Ver, por exemplo, Dominici ou o triunfo da literatura, que gira à volta da condenação de um camponês e onde a psicologia do condenado se reconduz, segundo Barthes, à pretensa «psicologia universal» do presidente do tribunal e do agente do Ministério Público, nela assentando a estrutura da condenação). Daí a sua análise ao «Sistema da Moda», ao discurso amoroso («Fragmentos de um Discurso Amoroso», a partir da análise da Paixão do Jovem Werther, de Goethe ), etc.
Esta abordagem estruturalista, por influência de Freud na teoria dos sonhos, tem sempre presente que um «texto», mesmo evidentemente o de uma sentença, tem dois textos: o texto manifesto ou aparente e o texto latente ou oculto. Normalmente, nós ficamo-nos (isto, a nível hermenêutico, claro) pelo texto aparente. É o escamoteamento da ideologia. Por exemplo, a «verdade» que nós constantemente afirmamos, de forma candidamente científica, sobre a finalidade da pena como «protecção dos bens jurídicos» e necessidade de «estabilização contrafáctica da norma jurídica violada». Na realidade, o que está por detrás disso, dessa fraseologia, é a descrença ou pelo menos o afrouxamento «ideológico» nas possibilidades de recuperação social do condenado, que ficam subalternizadas à função de prevenção geral. «As ligações entre o declínio do sector social do Estado e o desenvolvimento do seu braço penal são evidentes. Em simultâneo com o pedido de «menos Estado», na ordem económica e social, exige-se «mais Estado» para mascarar e conter as consequências sociais deletérias onde se verifica a deterioração da protecção social. O Estado individualista deve ser também um Estado punitivo» (Anabela Miranda Rodrigues, Consensualismo e prisão, Documentação e Direito Comparado, 1999, n.º 79/80).
Pois bem, a «desconstrução» no sentido que atrás foquei e que, aliás, hoje, também está – parece-me - em crise com a chamada «crise das ideologias», nunca nós a poderemos fazer, sob pena de estarmos a «descontruirmo-nos» a nós mesmos e a desmontarmos um poder cuja eficácia assenta justamente numa dada estrutura de verdade e de afirmação (coerciva) do direito, cujas soluções tendem para a certeza declarada com trânsito em julgado, e não para a provisoriedade.
Quanto ao conceito de «desconstrução» em Derrida, o seu verdadeiro criador (ele é o «filósofo da desconstrução»), vem a traduzir-se num trabalho (teórico) incessante no sentido de desmontar a «impostura» que constitui o cerne de todos os discursos organizados em torno de um significado «transcendental», e isto – para ele – é característico do pensamento ocidental: «As ideologias produzem um sujeito fetichizado por um jogo de dicotomias – bem/mal; são/doente; subjectivo/objectivo; norma/desvio; natureza/cultura – de que compete ao pensador pós-estruturalista mostrar o arbitrário e a vacuidade fundamental».
Ora, um trabalho destes não está ao nosso alcance, enquanto juízes produtores de sentenças, como parece evidente.
Quando se fala de «abertura» de uma decisão não é neste sentido. É antes num sentido muito mais comezinho e que se calhar passa muito mais (e ainda) por Kafka. Porque em Kafka o conceito que me parece enquadrar melhor o seu universo da justiça (ainda vigente) é o de «alienação», no sentido do juiz fechado no seu mundo desumanizado. «Estava tudo tão claro e estudado, que era como se todas as pessoas em seu redor se metessem num assunto que só a ele dizia respeito» - escreve Kafka no «Fragmento do delegado do procurador da República».
Ora, a abertura da decisão é tão-só o sair desse mundo fechado, hieroglífico, absurdo, totalitário, que fecha todas as pessoas em redor num assunto que só ao juiz parece dizer respeito.

Artur Costa

3 comentários:

josé disse...

Estou espantado! COmecei a ler o texto, tecido a preceito e que me parecia ter a marca do compadre esteves. Qual não é o meu espanto, ao deparar na assinatura: Artur Costa?!

Porque será que no JN os textos tecidos, raramento saem da sensaboria que impede a passagem do primeiro parágrafo e aqui se lê tudo com sabor, até ao fim?

Estou perplexo e espectante. O texto seguinte( ou anterior...), aliás, só vem confirmar a expectativa: temos, para ler por aqui, um muito bom colaborador.
Parabéns.

josé disse...

Agora vejo que no comentário falta um nobre "X" em vez de um fugidio "s". Acontece...

Kamikaze (L.P.) disse...

Subscrevo inteiramente o comentário do José (com x ou sem x).