08 novembro 2004

AS DUAS COISAS, PORQUE NÃO?

A propósito de uma intervenção minha produzida no encontro sindical realizado no Funchal, nos dias 29 a 31 de Outubro, o Dr. José Miguel Júdice, na qualidade de Bastonário da Ordem dos Advogados, escreveu um artigo de opinião no DN de 5/11/2004, intitulado “As duas coisas é que não é possível”, pondo a questão em termos maniqueístas para concluir que os procuradores tinham que fazer opções: ou queriam ser autónomos e, assim, magistrados, ou queriam não o ser, continuando a defender interesses do Estado e outras pessoas e entidades.

O observatório institucional de que me interpelou, para além de traduzir uma distinção imerecida, impede-me qualquer pretensão de resposta.

Mas uma vez que o meu nome e as minhas supostas teses são expressamente invocadas como pretexto do referido artigo, à míngua de outras possibilidades de reacção, sinto-me legitimado a tecer algumas considerações que, espero, possam esclarecer o exacto sentido da minha intervenção e, do mesmo passo, funcionar como comentário crítico à posição do Senhor Bastonário.

Na questionada intervenção, segui de perto um texto escrito por ocasião do VI Congresso do MP, realizado em Évora, adaptando-o à temática que agora era proposta e enveredando pela análise de novos desafios que me parecem confrontar actualmente o MP nos tribunais do trabalho.

Nessa linha, comecei por justificar a inclusão da área laboral nos trabalhos do encontro, por considerar, como há muito considero, que a intervenção do MP nessa jurisdição, mormente enquanto patrono dos trabalhadores por conta de outrem, se reconduz ao núcleo essencial das suas atribuições como magistratura, é dizer, a defesa da legalidade democrática, dos direitos fundamentais dos cidadãos trabalhadores, tal qual como sucede quando exerce a acção penal, defende os ausentes, os menores, etc.

É o que penso, tenho escrito em variadíssimos documentos publicados e nunca vi substancialmente contestado, a não ser com o lugar comum de que a magistratura serve para compor interesses, mas não para os defender.

Continuei depois, elencando um conjunto de factores exógenos e endógenos mais ou menos actuais cuja verificação reclama do MP laboral maior atenção, adaptação e novas práticas no exercício quotidiano e na planificação da sua actividade: nos primeiros, destaquei o conjunto de novas leis vigentes a partir de 2000, desde o CPT, à LAT, a imigração, em particular a ilegal, a discriminação em razão do sexo e, porque não, a recente descoberta dos advogados da existência do MP nos tribunais do trabalho e o incómodo que isso lhes parece causar, alertando para a Lei n.º 49/2004, de 24/8, de cuja leitura rígida pode mesmo concluir-se não poder o MP mais realizar tarefas de consulta jurídica nos tribunais do trabalho; nos segundos, salientei aspectos atinentes à organização interna do MP laboral, ou a falta dela, a inexistência de formação específica e a progressiva diminuição de qualidade do serviço por ele prestado naquela jurisdição, o que, a acrescer àquele risco e à natureza subsidiária do patrocínio, conduziria inelutavelmente, à extinção do patrocínio dos trabalhadores pelo MP, com sacrifício dos interesses desta classe de cidadãos particularmente indefesos ou vulneráveis, sempre, como é óbvio sem descartar a discussão sobre a razoabilidade ou não da manutenção dessa atribuição, como, de resto, de qualquer outra legalmente deferida ao MP.

Essa foi a essência da minha intervenção, tudo o mais são floreados e tiros dirigidos a títulos da imprensa, cuja responsabilidade me é de todo em todo alheia.

Alheia é-me igualmente a posição oficial do SMMP, pois que, sendo seu sócio, não integro os respectivos órgãos sociais e produzi uma intervenção pessoal e que só a mim compromete, embora no contexto de uma organização sindical.

Termino com duas notas e uma história infantil:

A primeira tem a ver com o facto de só agora, quase um século depois da instituição do questionado patrocínio, mas pouco tempo depois do Dr. José Miguel Júdice ter produzido um documento sobre saídas profissionais dos jovens advogados em que se apontava a extinção daquele como um dos possíveis contributos, a AO, melhor, o seu Bastonário, ter despertado para a pureza dos princípios de que decorreria a incompatibilidade do seu exercício com a natureza de magistratura que se pretende manter para o MP, mesmo depois de em 1999 a AO ter tido a oportunidade de o banir definitivamente do mundo das coisas sensíveis, por ocasião da revisão do CPT;

A segunda incide na surpreendente, mas aparentemente sincera posição do senhor Bastonário, para quem a autonomia do MP parece não ser um princípio cujo valor se afirme por si próprio e em nome da defesa dos interesses dos cidadãos, da sociedade democrática, mas algo que só serve enquanto moeda de troca em qualquer negociação ainda que disfarçada sob o lema de “pacto da justiça”.

Se assim for, declaro solenemente não estar disponível para participar nesse pacto, não vá acontecer-me o mesmo que à “Ratinha Presumida”:

«Era uma vez uma ratinha que estava a varrer o pátio da sua casa quando encontrou uma moeda de ouro.
Depois de muito pensar no que compraria com ela, decidiu-se por uma fita de cetim para enfeitar a cauda.
A ratinha estava sentada à porta de casa quando passou por ali o pato. Vendo-a tão linda, quis casar-se com ela. Mas a ratinha não gostou da voz dele e recusou-o.
Depois passaram por ali o galo, o cão e o burro. Os três pediram a ratinha em casamento.
Porém, ela não gostou do có-có-ró-có-có do galo nem do ladrar do cão nem do zurrar do burro. Tapou os seus ouvidos delicados e mandou-os embora aos três.
Chegou então o gato, e com os seus modos elegantes declarou-lhe o seu amor entre doces miados. A ratinha apaixonou-se imediatamente por aquele pretendente tão fino e lisonjeador.
A ratinha e o gato não tardaram a casar-se, e todos diziam que faziam um belo par.
No entanto, quando chegaram a casa, o gato fez o que sempre fizeram os gatos: perseguir os ratos.
E a ratinha escapou … por um triz!
»
In “Clássicos para sonhar”, da Girassol, Edições, L.da.

João Rato

2 comentários:

Anónimo disse...

Fico espantado com a perspectiva que o Procurador João rato afz quer do Ministerio publico quer da Advocacia. Telegraficamente:
1º- O Sr. Procurador Geral terá de ensinar aos seus Procuradores a hierarquia dos valores que justificam a existência do MP: Na verdade pôr no mesmo saco o exercício da acção penal e o patrocínio de particulares(sejam ou não trabalhares) tem que se lhe diga!.........
2º - Defender os direitos fundamentais dosa cidadãos não implica patrocinar casos concretos... enlameando-se, quantas vezes, em litigâncias duvidosas...Mas siginifica outras coisas como particip+ar na criação legislativa, etc...
3º - Não sabia, como João Rato parece pretender, que o MP podia exercer a tarefa de consultadoria jurídica npos Tribunais do Trabalho?! Pensava eu que, de acordo com a lei processual, apenas lhe cabia, como aos advogados, exercer o patrocínio, isto é, intentar e acompanhar as acções, defendendo o seu "cliente", como qualquer advogado (goste ou não do termo...) é esta a realidade! Será que o Procurador exerce o patrocínio? Ou, como me disseram, apenas teoriza sobre o travalho dos outros?????
4º - Gostaria de saber se o procurador Rato fala só por si, pelo sindicato ou por todos os procuradores?
5º -. Aliás, seria interessante ouvir a opinião dos procuradores!!! Não só do sindicato!
6º - Se parece ser verdade que os advogados exercem o lobby de pressionar que o patrocínio só a eles compita, como, de resto, resulta quer da Constituição quer da nova Lei sobre a Procuradoria, é descabido ese lobby?
7º - Ou é mais ilegítimo o lobby que João rato parece defender?
8º - Como referiu o sr. Bastonário, e, pergunto eu, é anormal que os advogados queiram exercer as suas competências? Ou é anormal que magistrados persistam, contra a evolução, a manter actividade de defesa de interesses particulares, por mais dignos que sejam, mas sempre particulares?
9º - E, no meio de tudo isto, como ficam os sindicatos?
10º - Porque é que, além do apoio judiciário, os trabalhadores não se indicalizam?
11º - Ou será quwe isso não interessará a certos procuradores por razões óbvias???
12º - Porque será que as Confederações pretendem patrocinar também os trabalhadores não sindicalizados?
13º - Porque será que os procuradores não se candidatam a ser advogados dessas Confederações ou Sindicatos de Classe, inscrevendo-se na respectiva Ordem de Advogados, deixando que os magistrados exerçam as funções públicas (não privadas!) para que foram criados?
14º - Ou querem, como diz o Sr. Bastonário, ser magistrados e simultaneamente advogados públicos?

Sinceramente, estou perplexo!
As coisas evoluem, sr. Procurador! E os trabalhadores de hoje não precisam de paternalismos de outrora!
Mas essa das consultas jurídicas... é deveras inovadora!!!
Que diz a isto, Sr. Bastonário?

Samuel Santos

Anónimo disse...

Caro Procurador,
Obrigado pelo enfado em me responder. Na verdade a nada respondeu, apenas utilizou frases feitas para justificar uma realidade ultrapassada. Os trabalhadores alhearam-se do sindicalismo por causa de pessoas como o senhor que defendem o paternalismo. Os trabalhadores são cidadãos como todos que sabem dos seus direitos e deveres e onde recorrer. Querem lá saber se é um defensor público como o procurador ou um outro advogado... desde que não paguem! Ora estamos no século XXI e os cidadãós sabem organizar-se quer em associações sindicais, desportivas, religiosas, etc.. etc..
Parece-me que o senhor fará parte de uma minoria que não acompanha os tempos. Porque não se passa para a advocacia sindical?
Os advogados defendem legitimamente o seu lobby: a advocacia! Seja sob a forma de mandato seja de patrocínio. Os magistrados devem defender inrteresses de públicos, como tal, e não através de de interesses privados, por maior dignidade que tenham. Deixem esse encargo a quem pertence!
Cedam naquilo que é óbvio. Ou estarão quiçá, como já constou na advocacia, a defender o vosso lobby que é a justificação de lugares de carreira???????????
Porque não defendem, então, a criação de defensores públicos, para cujo quadro passariam os "procuradores" dos trabalhadores? Esses defensores poderiam até defender outros cidadãos noutras quaisquer áreas e não só a laboral, não menos dignas, não acha?
Os trabalhadores quando vão aos tribunais do trabalho não vão à procura dos procuradores mas sim para tratar do seu problema, como quem vai a qualquer repartição. Vão porque aí os mandam ir, como poderiam ir logo ao respectivo sindicato, caso houvesse uma consciencialização da solidariedade corporativa que pessoas como o senhor obstaculizam, ainda que não intencionalmente. Na verdade, para quê sindicalizar-me e pagar quotas se tenho ali um senhor à minha espera, que até está ao lado do juiz e de tudo me trata?.........
Caro Procurador, a vida é bem mais rica de verdades que não podem caber no simplismo da sua cosntrução teórica!

De qualquer modo, bem haja pela abertura ao diálogo.
Já não é mau.

Samuel