05 novembro 2004

"As duas coisas é que não é possível"

... Por isso nós, os advogados, perguntamos solenemente aos nossos colegas procuradores: querem ser magistrados ou não querem? Querem ser autónomos ou advogados do Estado? Da resposta que nos derem decorrerá a posição que sobre essa matéria assumiremos nos nossos contributos para o Pacto da Justiça. E terá alguma dúvida o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público em que, se os advogados deixarem de os apoiar, o resultado será menos autonomia do Ministério Público e menos direcção da investigação?

Pergunta o Dr. José Manuel Júdice, Bastonário da Ordem dos Advogados, em artigo de opinião hoje publicado no DN, a seguir transcrito:

O corporativismo judiciário é indubitavelmente um dos factores que mais dificultam a reforma da Justiça. Uma das formas clássicas de actuação corporativista é inventar um inimigo externo para assim, na lógica de resistência à ameaça presumida, levar o grupo social a não reflectir e a aceitar ser carne para canhão dos que aproveitam ou julgam aproveitar-se do status quo.

Vem isto a propósito de uma notícia do Diário de Notícias que trata da antiga reivindicação da Ordem dos Advogados de retirar o Ministério Público (MP) do que não são funções próprias de uma magistratura. O DN fala, a esse propósito, do «lobby dos advogados» como forma de mascarar o lobby dos que no MP continuam a pensar que, se tudo ficar na mesma, mesmo que com o preço de um sistema judicial que não funciona, os seus pequenos e médios privilégios são protegidos.

Não posso deixar de responder à provocação. Se houvesse um lobby de advogados contra o MP, eu teria de saber. Mais: eu teria de o liderar. Por isso digo: do MP, ou, melhor, do seu sindicato, estou habituado à ingratidão e ao desperdício de ocasiões soberanas para mudar a Justiça. A título apenas exemplificativo, quando há quase três anos o programa eleitoral do PSD parecia querer colocar em crise a autonomia do MP, foi a Ordem dos Advogados que, por minha iniciativa, esteve na primeira linha e com isso levou o Governo eleito a uma clara inflexão.

Por isso posso com toda a legitimidade dizer ao dr. Rato, autor da comunicação no Funchal a que me reporto, que ele está a ver fantasmas onde não existe mais do que lógica, coerência e vontade de melhorar a Justiça. Assim, e clarificando:

1. O MP é uma magistratura. Mas, para além disso, são advogados de trabalhadores (sem muitas vezes respeitarem regras elementares de cautela com conflitos de interesse) e são advogado do Estado (dando pareceres a ministros e representando o Estado em processos cíveis, onde podem receber instruções). A minha tese é que o MP tem de optar: ou é uma magistratura, e então tem de deixar de ser um corpo de advogados; ou é um corpo de advogados, e então tem de assumir que não pode ser uma magistratura. As duas coisas é que não é possível.

2. O MP queixa-se, e com razão, que tem falta de quadros para as tarefas que lhe incumbem acima de todas: a direcção da investigação criminal e a acusação em processo- -crime. No entanto, ao mesmo tempo que se queixa disso, tem muitas dezenas de qualificados juristas ocupados com tarefas que outros, que não magistrados, podiam desempenhar, como as que atrás se referiram. A minha tese é que o MP tem de optar: ou assume que deve concentrar-se no que são as funções de uma magistratura, largando lastro; ou pretende dispersar-se por muitas funções que não são próprias nem típicas de uma magistratura, e então tem de aceitar a óbvia consequência, que é perder autonomia e perder a direcção da investigação criminal. As duas coisas é que não é possível.

3. O Estado tem necessidade de apoio jurídico de qualidade e, cumpre com gosto reconhecê-lo, muitos dos procuradores que servem de advogados do Estado nos tribunais e nos ministérios são altamente qualificados. Até ao Estatuto da Ordem dos Advogados, que foi na passada semana aprovado pelo Conselho de Ministros para como proposta de lei ser votado na Assembleia da República, não era possível que o Estado tivesse um contencioso formado por advogados como as empresas em regra possuem. Agora passou a ser possível que o Estado (incluindo autarquias locais) crie contenciosos constituídos por advogados que, em exclusivo, para o Estado trabalhem. A minha tese é que os procuradores que trabalham como advogados e consultores do Estado têm de optar: se continuam a sentir vocação de magistrados devem sair dos ministérios e dedicarem-se à investigação criminal, ao exercício da acção penal, à representação dos interesses difusos, aos acidentes de trabalho e à jurisdição de menores; se perderam a vocação devem transitar para a advocacia (onde serão recebidos de braços abertos, por melhorarem sem dúvida a qualidade da profissão) e passarem a integrar os contenciosos do Estado. O que não podem é ser magistrados às terças, quintas e sábados e advogados do Estado às segundas, quartas e sextas (descansando ao domingo). As duas coisas é que não é possível.

4. Por isso é pura demagogia, insensatez, desconhecimento ou má- -fé (conforme os casos...) dizer que isto é uma estratégia para que o Estado passe a gastar mais dinheiro e com isso os advogados como grupo social a ficarem mais ricos. Pelo contrário, ouso dizer: se o Estado criar verdadeiros contenciosos vai poupar dinheiro e ser mais bem servido do que agora, muitas vezes com procuradores desmotivados e sem experiência a representá-lo nos tribunais.

5. E o mesmo se diga dos trabalhadores que, não tendo apoio dos sindicatos nem recursos financeiros, são defendidos pelos procuradores, nos tempos livres que possuem depois de realizarem outras actividades. Por um lado, porque cada vez mais os procuradores se socorrem de advogados para tal fim; depois, porque a Ordem dos Advogados já admitiu que os trabalhadores possam ser representados por advogados de sindicatos, mesmo que não sejam sindicalizados, aproveitando-se a excepcional competência e experiência dos contenciosos sindicais, tendo esta proposta sido acolhida com agrado pela CGTP, pela UGT e pela própria CIP; finalmente, porque o novo sistema do apoio judiciário vai melhorar fortemente o desempenho e o controlo deontológico, ficando muito mais barato para o Estado do que custa um sistema público baseado em procuradores e suas estruturas de apoio.

6. As duas coisas não são possíveis, disse-o atrás. E reafirmo: o MP e o seu sindicato não podem querer o apoio da Ordem dos Advogados na difícil luta pela sua autonomia, pela direcção da investigação criminal, pela formação conjunta e pelo acesso à carreira judiciária e, em simultâneo, não se mexer, não aceitar reformas e dedicar-se a morder a mão dos advogados que os ajudam.

7. Este bastonário está de saída. Mas que se não equivoquem com isso. Seja quem for o eleito para me suceder, há três anos foi eleito na minha lista e com um programa claríssimo nesta matéria. E o Pacto de Justiça é um momento incontornável de clarificação.

8. Por isso nós, os advogados, perguntamos solenemente aos nossos colegas procuradores: querem ser magistrados ou não querem? Querem ser autónomos ou advogados do Estado? Da resposta que nos derem decorrerá a posição que sobre essa matéria assumiremos nos nossos contributos para o Pacto da Justiça. E terá alguma dúvida o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público em que, se os advogados deixarem de os apoiar, o resultado será menos autonomia do Ministério Público e menos direcção da investigação?

Será que querem ser obrigados a mudar de nome, passando a chamar-se SMP, porque o termo «magistrados» irá pelo cano empurrado pelo insensato conservadorismo dos que não percebem o mundo em que vivem?

5 comentários:

Anónimo disse...

Talvez em Évora há mais de dois, não?
Ainda no reinado Pena dos Reis.
Pensei que as intervenções do Funchal fossem novas reflexões.

Cronista Oficioso da 3R disse...

JM Júdice revela como Til refere a sua grande capacidade estratégica, embora seja bom sublinhar também outros pontos de que ele não trata:
- Compreende-se mal a defesa que é feita no MP por esta magistratura manter-se a exercer funções pouco curiais com a defesa dos principais valores constitucionais que lhe estão atribuídos (o caso mais flagrante verifica-se nos tribunais do trabalho... área em que tudo leva a crer que tirando algumas honrosas excepções tudo derive de comezinhos interesses pessoais...). Aí a questão que se coloca, no plano do interesse público, é se sendo o MP afastado dessas tarefas não se devia arranjar mecanismos alternativos ao despejo de mais incompetentes na justiça penal...

- A questão da representação dos interesses privados do Estado contudo gera outros problemas, pois já tem havido experiências de os mesmos serem representados por advogados, sem qualquer mecanismo de escrutínio e de forma pouco compatível com a defesa desses interesses (e é pena que não seja feita a verificação «a posteriori» do que aí se tem passado)
- A via de privatização desse negócio, sem checks and balances já não é um problema do MP e dos seus procuradores mas da sociedade e dos recursos financeiros do Estado;
- Qualquer alternativa ao modelo vigente deverá assim passar por um organismo estadual, com regras rigorosas de funcionamento e controlo (e agentes com um estatuto próprio e exclusividade de funções)
- Mesmo à luz do modelo vigente era possível uma clarificação, em que mesmo que essa tarefa fosse assegurada (apenas ou em conjunto com outros juristas) por procuradores do MP, aos mesmos quando fosse atribuído esse encargo deveriam ser retirados as funções públicas essenciais do MP (e operando obviamente com um estatuto diverso no exercício das mesmas);
- Naturalmente se se criasse um corpo de advocacia do Estado, o recrutamento dos seus membros deveria ser feito por concurso e com elevado rigor (de preferência sem a mediocridade evidente no que se passa em termos de concursos do CEJ)

Cronista Oficioso da 3R disse...

JM Júdice revela como Til refere a sua grande capacidade estratégica, embora seja bom sublinhar também outros pontos de que ele não trata:
- Compreende-se mal a defesa que é feita no MP por esta magistratura manter-se a exercer funções pouco curiais com a defesa dos principais valores constitucionais que lhe estão atribuídos (o caso mais flagrante verifica-se nos tribunais do trabalho... área em que tudo leva a crer que tirando algumas honrosas excepções tudo derive de comezinhos interesses pessoais...). Aí a questão que se coloca, no plano do interesse público, é se sendo o MP afastado dessas tarefas não se devia arranjar mecanismos alternativos ao despejo de mais incompetentes na justiça penal...

- A questão da representação dos interesses privados do Estado contudo gera outros problemas, pois já tem havido experiências de os mesmos serem representados por advogados, sem qualquer mecanismo de escrutínio e de forma pouco compatível com a defesa desses interesses (e é pena que não seja feita a verificação «a posteriori» do que aí se tem passado)
- A via de privatização desse negócio, sem checks and balances já não é um problema do MP e dos seus procuradores mas da sociedade e dos recursos financeiros do Estado;
- Qualquer alternativa ao modelo vigente deverá assim passar por um organismo estadual, com regras rigorosas de funcionamento e controlo (e agentes com um estatuto próprio e exclusividade de funções)
- Mesmo à luz do modelo vigente era possível uma clarificação, em que mesmo que essa tarefa fosse assegurada (apenas ou em conjunto com outros juristas) por procuradores do MP, aos mesmos quando fosse atribuído esse encargo deveriam ser retirados as funções públicas essenciais do MP (e operando obviamente com um estatuto diverso no exercício das mesmas);
- Naturalmente se se criasse um corpo de advocacia do Estado, o recrutamento dos seus membros deveria ser feito por concurso e com elevado rigor (de preferência sem a mediocridade evidente no que se passa em termos de concursos do CEJ)

Anónimo disse...

A questão que se deve colocar, em meu entender, é a de saber quais os problemas que a representação do Estado e o patrocínio dos trabalhadores pelo MºPº tem colocado.
Se o Sr. Bastonário apontasse situações concretas em que o Estado ou os trabalhadores tivessem sido menos bem representados pelo facto de o terem sido pelo MºPº, a questão suscitava refexão.
Obviamente que, em abstracto, a mesma pode ser equacionada, podendo ser esgrimidos bons argumentos nos dois sentidos.
Mas parece-me pouco elegante colocar a questão nos termos propostos, ou seja: toma lá a autonomia, dá cá o patrocínio.
Lemoncourt

Anónimo disse...

Estranha-se o silêncio do Dr. João Rato, dado que já tem emitido opinião neste blog.
Estranha-se também que tendo esta polémica sido trazida ao Incursões por LC, tenha sido colocado no Cum Grano Salis, pelo mesmo LC (?) o texto de João Rato por aquele referido em comentário a este post - sem que disso tenha sido dado conta aqui. O link é: http://granosalis.blogspot.com/2004/11/o-ministrio-pblico-e-jurisdio-laboral.html

Interessante também o que a respeito deste tema foi oportunamente escrito no Direitos e na Grande Loja. Links, respectivamente: http://direitos.blogspot.com/2004_11_01_direitos_archive.html#109968485280037142 e
http://grandelojadoqueijolimiano.blogspot.com/2004/11/bem-vistas-as-coisas.html#comments