O Inverno é a estação do frio, das chuvas, do nevoeiro, da neve e do gelo. Substancialmente, é a época da água.
Nesta altura, a água é abundante e, como estamos marcados por uma visão mercantilista da vida, só o que é escasso ganha valor. Mas os místicos, os poetas, os artistas e os filósofos sempre acharam que a lei da oferta e procura não determina o que é fundamental. Foram, por isso, os primeiros a descobrir na água a força simbólica que precisavam para dar sentido ao envolvimento do homem no mundo.
O sentido parte do homem e a relação do homem com a água é tão estreita que, sabemo-lo hoje, ela é o constitutivo fundamental da sua própria vida. Desde as civilizações mais remotas, foi conferido à água um duplo significado: uma vezes, simbolizava a morte e o sofrimento; outras, a vida e a alegria.
A água esteve, por isso, associada ao que há de mais humano no homem e marcou a sua própria história.Nas narrações míticas, as águas tenebrosas do mar eram habitadas por um estranho monstro, o Leviatã. Hobbes aproveitou esta imagem para falar da «guerra de todos contra todos» gerada pelo individualismo possessivo do estado natural.
Também Camões se serviu do horrendo Adamastor para ligar o infortúnio amoroso ao naufrágio e falar dum «medonho choro». E, mais recentemente, a poetisa do Livro das Mágoas, Florbela Espanca, irmanou no mesmo destino os olhos e o sofrimento: «Irmãos na Dor, os olhos rasos de água/ chorai comigo a minha imensa mágoa».
As fontes de água são também símbolos de vida, esperança e alegria. Logo no início do livro do Génesis diz-se que «Deus era levado sobre as águas» e no Evangelho de S. João a água é fonte de vida eterna «Mas a água que eu lhe der, virá a ser nele uma fonte de água, que jorre para a vida eterna».
Nas reflexões profanas, a água também é considerada como fonte da vida. Tales de Mileto considerou-a o princípio de todas as coisas e os alquimistas que procuravam o elixir da longa vida e a pedra filosofal pensavam que a água era um dos quatro elementos constitutivos da matéria. E é a descoberta dos elementos que compõem a água (oxigénio e hidrogénio) que faz de Lavoisier o criador da química moderna.
Sem meter a foice em seara dos doutos incursionistas, lembro que no Direito, a água é um bem imobiliário: águas públicas, particulares e territoriais. E quando falamos de transparência ou limpidez é sempre a água que serve de fundo a um horizonte de sentido.
Assim acontece com as coisas puras e cristalinas e esta foi sempre a melhor imagem da própria água. E quando isso não acontece, concluimos que há água no bico.
02 novembro 2004
Sem água no bico
Marcadores: Primo de Amarante (compadre Esteves-JBM)
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1 comentário:
A propósito, sugiro a leitura deste belo poema de Eugénio de Andrade:
TODAS AS ÁGUAS
Água, água.
Porosas águas da alegria,
do pão da mesa.
Águas de Li Bai ébrias
de ternura,
de S. João da Cruz abrasadas
de amor, ó águas
de Claudel morrendo à sede.
Água. Água.
Todas as águas, todas.
Ó antiquíssima água das estrelas,
próximas distantes águas matinais,
oculta água dada a beber
num só olhar.
EUGÉNIO DE ANDRADE, Sulcos da Sede
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