Desde logo, deixo claro que o que irei dizer não tem a mínima ligação com qualquer processo pendente, do conhecimento público ou não.
A questão suscitada pelo direitos e aqui posteriormente discutida - respeitando à validade da detenção fora de flagrante delito, estando em causa crime punido com pena de prisão superior a três anos, por mandado do Ministério Público quando não for previsível que ao detido venha a ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva - já tem alguns dias; porém, é pertinente e de aplicação frequente para todos aqueles que - como eu - trabalham na área dos inquéritos no processo penal, pelo que a ela volto, expondo o meu ponto de vista (com seus fundamentos) e esperando trazer alguns novos argumentos jurídicos.
Comecemos por recordar o que o CPP prescreve a este propósito. No n.º 1 do artigo 254.º prescreve que a detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada (alínea a) para, no prazo máximo de 48 horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação de ou execução de uma medida de coacção. No artigo 257.º, sob a epígrafe detenção fora de flagrante delito, prescreve-se que fora de flagrante delito a detenção só pode ser efectuada por mandado de juiz competente ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público (n.º1).
De uma interpretação literal desta norma resultaria que, desde que se visasse a apresentação do visado ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção, o Ministério Público poderia sempre deter fora de flagrante delito qualquer pessoa suspeita da prática de crime punido com pena de prisão de máximo superior a três anos.
Contudo, há ainda que atender ao que a Constituição (CRP) dispõe/impõe com relevo para a questão. Sendo a liberdade garantida pela CRP como um dos direitos, liberdades e garantias (artigo 27.º, n.º 1), só pode ser restringida pela lei nos casos expressamente previstos na própria CRP, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n 2). No seu artigo 27.º, n.º 3, alínea b), permite-se a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
À luz destes preceitos e princípios constitucionais (que, recorde-se, são directamente aplicáveis – artigo 18.º, n.º 1), impõe-se uma diferente interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 257.º do CPP. Em verdade, sendo a detenção uma privação de liberdade, impõe-se que as restrições que lhe sejam feitas se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Daqui resulta a admissibilidade da detenção fora de flagrante delito por mandado do Ministério Público, estando em causa crime punido com pena de prisão superior a três anos, mesmo quando não for previsível que ao detido venha a ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, desde que em concreto se verifique qualquer das circunstâncias previstas no artigo 204.º do CPP e a urgência da situação não permita aguardar que se promova ao juiz de instrução a aplicação de uma medida de coacção, que o processo lhe seja presente, que ele o despache, agende dia para o interrogatório, o funcionário cumpra o despacho e se proceda à notificação (por via postal - que demorará sempre alguns dias - ou por contacto pessoal).
Não existindo tal urgência, não se justifica que desde esse momento inicial se faça qualquer restrição à liberdade do visado; tal detenção constituiria uma restrição desnecessária à tutela de qualquer outro direito ou interesse protegido pela Constituição. Assim não sucede se o perigo de fuga (fuga que constituiria ofensa à realização da justiça, valor consagrado na CRP), o perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente para aquisição, conservação ou veracidade da prova (que também atentaria contra a realização da justiça) ou perigo de perturbação da ordem pública e da tranquilidades públicas ou de continuação da actividade criminosa (atingindo novamente valores constitucionais, alguns deles protegidos pela tipificação penal) forem de tal forma graves que urja agir de imediato, impedindo rapidamente o arguido de qualquer dessas condutas. Nestas situações, a restrição ao direito liberdade é feita para salvaguardar outros valores e interesses constitucionais.
Não se diga que, nesses casos, se imporá necessariamente a aplicação da prisão preventiva. De modo algum, pois muitas são as situações em que (felizmente) medidas de coacção não privativas da liberdade são adequadas a impedir tais condutas do arguido. Para que tal suceda, há é que as aplicar rapidamente, o que não pode acontecer se o arguido não for de imediato detido.
Por que motivo se iria permitir ao arguido a fuga (frequente com arguidos oriundos dos PALOP, em que é suficiente a proibição de se ausentar para o estrangeiro, entregando o arguido o seu passaporte, sem o qual não consegue embarcar em nenhum aeroporto ou cais de embarque da UE), a destruição de documentos essenciais à investigação (para o que bastará a imposição de afastamento do local onde os mesmos se encontram até que sejam apreendidos), a continuação da sua actividade criminosa?
Outras situações há em que o mesmo fundamento permite a detenção ainda que não seja previsível que ao arguido venha a ser aplicada a prisão preventiva. Como o texto já vai (muito) longo, ficará para outra ocasião.
De uma interpretação literal desta norma resultaria que, desde que se visasse a apresentação do visado ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção, o Ministério Público poderia sempre deter fora de flagrante delito qualquer pessoa suspeita da prática de crime punido com pena de prisão de máximo superior a três anos.
Contudo, há ainda que atender ao que a Constituição (CRP) dispõe/impõe com relevo para a questão. Sendo a liberdade garantida pela CRP como um dos direitos, liberdades e garantias (artigo 27.º, n.º 1), só pode ser restringida pela lei nos casos expressamente previstos na própria CRP, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n 2). No seu artigo 27.º, n.º 3, alínea b), permite-se a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
À luz destes preceitos e princípios constitucionais (que, recorde-se, são directamente aplicáveis – artigo 18.º, n.º 1), impõe-se uma diferente interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 257.º do CPP. Em verdade, sendo a detenção uma privação de liberdade, impõe-se que as restrições que lhe sejam feitas se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Daqui resulta a admissibilidade da detenção fora de flagrante delito por mandado do Ministério Público, estando em causa crime punido com pena de prisão superior a três anos, mesmo quando não for previsível que ao detido venha a ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, desde que em concreto se verifique qualquer das circunstâncias previstas no artigo 204.º do CPP e a urgência da situação não permita aguardar que se promova ao juiz de instrução a aplicação de uma medida de coacção, que o processo lhe seja presente, que ele o despache, agende dia para o interrogatório, o funcionário cumpra o despacho e se proceda à notificação (por via postal - que demorará sempre alguns dias - ou por contacto pessoal).
Não existindo tal urgência, não se justifica que desde esse momento inicial se faça qualquer restrição à liberdade do visado; tal detenção constituiria uma restrição desnecessária à tutela de qualquer outro direito ou interesse protegido pela Constituição. Assim não sucede se o perigo de fuga (fuga que constituiria ofensa à realização da justiça, valor consagrado na CRP), o perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente para aquisição, conservação ou veracidade da prova (que também atentaria contra a realização da justiça) ou perigo de perturbação da ordem pública e da tranquilidades públicas ou de continuação da actividade criminosa (atingindo novamente valores constitucionais, alguns deles protegidos pela tipificação penal) forem de tal forma graves que urja agir de imediato, impedindo rapidamente o arguido de qualquer dessas condutas. Nestas situações, a restrição ao direito liberdade é feita para salvaguardar outros valores e interesses constitucionais.
Não se diga que, nesses casos, se imporá necessariamente a aplicação da prisão preventiva. De modo algum, pois muitas são as situações em que (felizmente) medidas de coacção não privativas da liberdade são adequadas a impedir tais condutas do arguido. Para que tal suceda, há é que as aplicar rapidamente, o que não pode acontecer se o arguido não for de imediato detido.
Por que motivo se iria permitir ao arguido a fuga (frequente com arguidos oriundos dos PALOP, em que é suficiente a proibição de se ausentar para o estrangeiro, entregando o arguido o seu passaporte, sem o qual não consegue embarcar em nenhum aeroporto ou cais de embarque da UE), a destruição de documentos essenciais à investigação (para o que bastará a imposição de afastamento do local onde os mesmos se encontram até que sejam apreendidos), a continuação da sua actividade criminosa?
Outras situações há em que o mesmo fundamento permite a detenção ainda que não seja previsível que ao arguido venha a ser aplicada a prisão preventiva. Como o texto já vai (muito) longo, ficará para outra ocasião.
Cumpre ainda dizer que o que se expôs vale também quando seja o próprio juiz a ordenar a detenção; também ele só poderá deter o arguido se tal foi necessário à salvaguarda de valores e interesses protegidos pela Constituição. Não há qualquer fundamento para que o juiz escape ao imperativo constitucional.
Finalmente, assim se compreende que o n.º 2 do artigo 257.ºdo CPP expressamente permita às autoridades de polícia criminal a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando se trate de caso em que é admissível a prisão preventiva (ou seja, em que exista fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos), existindo elementos que tornem fundado o perigo de fuga e não sendo possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.
Tal não sucederia se a detenção apenas fosse possível quando fosse previsível a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva. Em verdade, não pode (nem deve) a autoridade policial substituir-se ao Magistrado do Ministério Público titular do inquérito antecipando qual a medida de coacção que, em interrogatório judicial, irá ser promovida por este. O que pode (e deve) é apenas aferir da existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, analisar o perigo de fuga e, sendo este fundado e não sendo possível esperar pela intervenção da autoridade judiciária, ordenar de imediato a detenção do mesmo.
Sendo tal permitido às autoridades de polícia criminal, não se perceberia que o não fosse ao Ministério Público.
Sendo tal permitido às autoridades de polícia criminal, não se perceberia que o não fosse ao Ministério Público.
Assim o defendo. Assim o tenho feito.
Espero voltar mais vezes, se me quiserem receber...
9 comentários:
Caro Rui,
Parabéns pela estreia e um abraço pela rapidez e qualidade da resposta ao desafio que te lancei aqui. Espero passar a ler-te, no Incursões, com frequência...
Excelente escrito. Parabéns.
Sobre a detenção nos termos indicados, talvez pudesse ainda ser ponderado o seguinte: a necessidade de se actuar dessa forma por razões tácticas da investigação.
Sabemos que este assunto apareceu por causa de uns arguidos excelentíssimos. Sabemos que foram efectuadas buscas, em simultâneo, em vários locais. Sabemos que esses buscas poderiam trazer elementos de prova para o processo e sabemos que havia necessidade em se proceder com celeridade e a preservação dos elementos de prova talvez implicasse a detenção simultânea, por razões que a própria direcção da investigação saberá.
Tendo isto em consideração, só me resta dar os parabéns a quem decidiu como decidiu, ou seja, ao magistrado de Gondomar e ao magistrado coordenador, se assim posso dizer e porque sei que é este assunto que está em cima da mesa- no caso, do postal. Parece-me uma questão de elementar justiça, mesmo que concorde com os termos gerais em que a questão aqui - e no Direitos- foi colocada. Com esses termos gerais, aliás, toda a gente parece concordar, porque deriva de um senso comum que me parece bom.
COmo é bom que se discutam estas matérias aqui, desligando-as das pessoas e atendo-as aos casos que mesmo concretos podem tratar-se em abstracto.
Caro Pinto Nogueira:
Não concordo com o exagero de linguagem, embora às vezes incorra nessa armadilha, enleado na vertigem da escrita e do uso da palavra indiscriminada, para atingir um efeito retórico.
Quando assim acontece e caio em mim, olhando para o borrão num pano limpo, peço desculpa.
Não sei se será o caso e nem deveria estar para aqui a alvitrar conselhos que bem preciso para mim mesmo.
Contudo, uma outra coisa me parece:
o papel desempenhado por quem escreve aqui, mesmo em tom que pareça por vezes desajustado, é insubstituível no mérito que teve e tem em trazer para esta praça assuntos de interesse geral.É um louvor merecido e o sítio é bem frequentado, como todos sabemos e lemos.
Só por isso, valia a pena o esforço de um entendimento e de uma ultrapassagem de diferendos que às vezes provêm de equívocos.
Tenho dito e faço votos nesse sentido.
As minhas saudações, Pinto Nogueira. Sejas bem vindo a esta sociedade aberta bloguista. Todos gostamos de ti, porque une-nos o fundamental: querer um mundo melhor, mais justo e mais humano. Por mais paradoxal que pareça a verdade é só uma: os pequenos conflitos que eventualmente existem de interpretação só existem porque há esse objectivo comum.Por isso, manda à merda as pequenas quesílias, cumpre o que em consciência é teu dever e recebe um fraterno abraço de mim, do L.C. da Kamikaze, do José e de todos os outros que gostam de ti, irmão!
Quando é que queres ir comigo à serra, saborear um anho assado e um vinho da quinta das fragas?!...
Responde que o tempo é curto. Mas responde de forma simpática!
Vejamos então:
As razões tácticas que referi, serão aquelas que acrescem às outras que poderão legalmente justificar as detenções e que o incursionista Rui Cardoso enumerou muito bem. Aquelas sem estas, não subsistem de pé, pois faltar-lhes-á o apoio essencial da legalidade estrita.
Mesmo assim, elaboro mais um pouco, partindo de pressupostos conhecidos dos jornais e de outros, inferidos da experiência. A detenção de meia dúzia de pessoas, simultaneamente, para interrogatório, pode e deve justificar-se se houver razões para crer que a mesma trará benefícios imediatos e imprescindíveis a essa investigação em curso.
Se em simultâneo se fazem buscas domiciliárias para recolher elementos de prova e se existem suspeitas prévias no sentido de se recolherem indícios importantes de determinado tipo de infracções peculiares, parece-me até que é mandatório que tal aconteça, sob pena de se estragar o efeito dessas buscas e estragar mesmo todo o trabalho prévio de investigação.
Se em vez das detenções em casos como este de que falamos, se enviarem postais de convocatória às pessoas ou até telefonemas de convite a depor, e depois lhes fizerem as buscas, fácil é perceber que isso pode constituir uma péssima táctica investigatória.
Os direitos, liberdades e garantias das pessoas devem ser preservados. Mas deve também ser preservado o direito da sociedade em ver investigado de modo competente e eficaz, dentro da legalidade estrita, aquilo que tem de ser investigado.
O trabalho da polícia e do MP não é fácil nesses casos e ainda mais difícil será decidir com ponderação, razoabilidade, proporcionalidade e adequação medidas deste teor.
Porém, como bem diz o Rui Cardoso, só mesmo no caso concreto e só os investigadores envolvidos poderão dizer alguma coisa de concreto e preciso sobre isso.
A partir do momento em que se definem as medidas como dentro da legalidade estrita, e parece-me que a questão nesse aspecto está resolvida, a glosa sobre o assunto torna-se académica. E nesse campo já não ponho mais pregos; nem estopa.
Não sou jurista. Penso que este debate, sendo muito técnico, também tem uma carga civica e humana; e, por isso, diz respeito a todos nós,como seres humanos e cidadãos. Mas, talvez a altura e o espaço de o debater não seja agora e aqui, muito em cima de factos que envolvem pessoas muito importantes e com um auditório que, como já se viu, ultrapassa os incursionistas. Pode acontecer que se pense que esta questão não se colocaria se fosse visada a gente simples, a que geralmente não tem os holofotes da televisão a esperá-la, quando é detida. Estou muito mais preocupado com a gente que é esquecida, por não ser importante. Isso, volto a dizer, não quer signifificar que não ache este debate importante, mas talvez em outro espaço, onde não seja aproveitado para fins que não são os intencionados, nem corra o risco de crispar relações entre profissionais e amigos.
Nutro a ilusão e acalento a impressão que ESTE debate aqui, hoje, está a contribuir/contribuiu - por via de maior/melhor esclarecimento de posições - para minorar o que o compadre receia - o "crispar relações entre profissionais e amigos." Oxalá não esteja a ver o filme ao contrário e haja calma, bom senso e ponderação, designadamente a escrever...
Já agora: apreciei o seu último comentário. Espero não ter sido a única.
Quando, no meu comentário anterior, mencionei que gostara do "último" comentário do compadre esteves, referia-me ao "penúltimo", em geral e em especial à parte em que se diz " Por mais paradoxal que pareça a verdade é só uma: os pequenos conflitos que eventualmente existem de interpretação só existem porque há esse objectivo comum" (querer um mundo melhor, mais justo e mais humano).
Já quanto ao último comentário do compadre, confesso que não entendo tanto receio de "visibilidade" do debate: está colocado em termos abstractos, não visa ninguém em particular e, afinal, divergências de opinião não são comentadas e alardeadas pela comunicação social (umas vezes de forma correcta, outras deturpada) com tanta frequência, mormente a propósito de decisões contraditórias entre tribunais de 1ª instância e de instância superior?
O que sim, concordo, é que - como diz o José - com os termos gerais em que esta questão jurídica tem sido colocada "toda a gente parece concordar", sendo que "O trabalho da polícia e do MP não é fácil nesses casos e ainda mais difícil será decidir com ponderação, razoabilidade, proporcionalidade e adequação medidas deste teor. Porém, como bem diz o Rui Cardoso, só mesmo no caso concreto e só os investigadores envolvidos poderão dizer alguma coisa de concreto e preciso sobre isso.", pelo que "a glosa sobre o assunto torna-se académica. E nesse campo já não ponho mais pregos; nem estopa."
Kamicaze fez a melhor sintese. Como se costuma dizer "pôs os pontos nos is". Nada mais a acrescentar.
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