08 dezembro 2004

Coisas da Justiça

Hoje à tarde (ontem, já), um colega do mesmo prédio, simpatizante do PS, com fortes ligações à Igreja e aos Escuteiros, boa alma e bom advogado, sem ligações ao futebol, veio cravar-me um cigarro e aproveitou para protestar contra a justiça no caso "Apito Dourado" e chegou mesmo a garantir-me que, se fosse caso disso, ele, homem de paz e sem ligações ao futebol, iria a Gondomar numa qualquer manifestação de apoio a Pinto da Costa. Fez mais: acusou-me de ser um dos culpados da situação, porque vou à TV branquear a actuação da justiça naquilo que ele considera serem manifestas injustiças.
Ele não tem razão, praticamente em quase tudo. Mas a discussão com ele é sempre estimulante, porque acaba sempre na religião, coisa de que ele sabe muito e eu não sei nada.
Mas hoje foi injusto. Enquanto comentador das coisas do mundo, eu não sou um branqueador de ilegalidades. E se por vezes pode acontecer, é apenas por ignorância técnica e nunca por uma atitude deliberada de branquear o que quer que seja. Aliás, a minha atitude como advogado demonstra-o à saciedade.
Recordo, até, que da última vez que comentei publicamente a Casa Pia fui muito duro para com a investigação e as corporações do direito. E fui muito crítico com o julgamento que está a ser feito na praça pública. Sublinhei os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na culpa dos arguidos, mesmo sem saber porquê, e os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na inocência dos arguidos, também sem saber porquê. Disse mais: que há pessoas que querem que os arguidos sejam condenados, ainda que sejam inocentes, e que há pessoas que querem que eles sejam absolvidos, ainda que sejam culpados.
Tudo isto reconduz-nos a uma questão: a justiça é fiável? E a outra: todos os cidadãos são iguais perante a lei? São questões que já aqui abordei noutro registo. Todos os dias penso nisto. Coisas que também são de boa alma. E concluo, aos poucos, coisas extraordinárias: se é verdade que há operadores da justiça que são incapazes de "atacar" figuras ditas intocáveis, numa atitude covarde, também é verdade que há operadores da justiça que se deleitam a "atacar" os ditos intocáveis, numa atitude também covarde.
Não faltam exemplos de uns e de outros e ambos estão errados. E ambos dão uma má imagem da justiça.
É óbvio que eu estou fora. Sou advogado. Sei perfeitamente o que não devo defender e o que devo defender. E sei mais: sei o que estou obrigado a defender. Ou a atacar. Sem olhar à intocabilidade de quem ataco ou à fragilidade de quem defendo...

(A desenvolver um dia mais tarde. Até porque, como já aqui disse, há uns que são mais intocáveis do que outros - absolutamente)

1 comentário:

Mocho Atento disse...

Nos tempos modernos, alguém resolveu que a função do Juiz é interpretar e aplicar a lei. Só que essa tarefa é própria do múnus do Juiz, não é do juiz enquanto indivíduo. O Juiz interpreta e aplica o Direito que vigora na Comunidade. O Direito tem fundamento democrático. O Direito não é o que cada juiz quer. A opinião voluntária de quem exerce a judicatura não é nem pode ser relevante. O voluntarismo jurídico dominante, como corrente jusfilosófica pós-moderna de cariz neoliberal, conduz ao fim do Direito. Não pode o cidadão ficar sujeito à opinião de cada juiz. Se for julgado por este é absolvido; se for julgado por aquele é condenado. Onde está o Direito ? A Justiça não é aplicação da lei ao caso concreto; a justiça é dar a cada um o que é seu.A função e tarefa dos tribunais é fazer Justiça. A Lei e o Direito são os instrumentos que a comunidade dispõe para que Justiça se faça. Por isso, na comunidade o sentimento de Justiça prevalece sobre o Direito.Nunca um resultado injusto e intolerável para a comunidade pode ser legal. Nesse caso, o mais certo é a interpretação da lei estar errada. A interpretação e aplicação há-de sempre conduzir à Justiça.
O voluntarismo de cada Juiz, que interpreta a lei como lhe apetece (e não há aqui nenhum processo de intenção), provoca a instabilidade social e cria a desordem económica. Em Portugal, grande parte das dificuldades na captação de investimento decorre da incerteza das decisões judiciais. è que há acórdãos para tudo, passe o exagero.
A Lei e o Direito (não são a mesma coisa) constroem-se ao longo do tempo, pelo que a sua interpretação tem de ser actualizada e o seu texto contextualizado.
Para exemplo, podemos socorrer-nos da Bíblia. Os textos dos Evangelhos não foram escritos por Mateus, Marcos, Lucas ou João. Foram-lhes atribuídos. Os textos formaram-se nas primitivas comunidade cristãs, com base no ensino dos Apóstolos e na transmissão dos conhecimentos de fé. Eles representam ,não um livro histórico, mas sim uma teologia. São o resultado da reflexão da comunidade que assim assume a História e a interpreta de acordo com a Fé. O disparate de se afirmar que qualquer um pode ler a Bíblia e interpretá-la à sua maneira conduziu a aberrações sem qualquer sentido e provocaram divisões, ódios e guerras, cujos efeitos ainda hoje sentimos.
Assim também no Direito, há que perceber quais os fundamentos das normas escritas, os seus contextos e interesses fundamentais da comunidade que se querem preservar.
No caso concreto de "Pinto da Costa", há demasiadas perplexidades que me chocam. Agora é preciso deter os cidadãos para prestarem depoimento ? Não é mais barato convocar por carta, fax, mail ou telefone ? È preciso chamar a comunicação social ? è preciso manter as pessoas em longos interrogatórios, em que obviamente a capacidade das pessoas fica diminuída ? Como é possível proibirem-se cidadãos de contactarem com os advogados ? Como é admissível que os arguidos sejam proibidos de contactarem com outros arguidos mesmo por interpostas pessoas ? Parece que as testemunhas podem contactar entre si e com os demais intervenientes do processo. A acusação pdoe falar com quem quiser; a defesa não pode. Se os advogados falarem entre si, os clientes vão ser detidos ? Se calhar, todas as decisões estão fundamentadas e serão legais. Mas serão justas ? É esse sentimento que não tenho. Oxalá, venha a descobrir que estava errado.