Por António Barradas Leitão, membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pela Assembleia da República, no Expresso de 4-12-2004:
APÓS o recente episódio das «cassetes roubadas», muitas das atenções da opinião pública viraram-se para o Ministério Público e para o seu papel no sistema de justiça. De cada vez que o dr. Souto de Moura presta declarações à comunicação social, seja em Badajoz ou à porta de casa, logo surge na imprensa uma multiplicidade de opiniões e comentários acerca da «crise da justiça» e da actuação do Ministério Público.
Muitas dessas intervenções constituem meros ataques ressabiados à pessoa do actual procurador-geral mas outras, de âmbito mais geral, acabam por colocar em causa o actual estatuto do Ministério Público e a sua autonomia.
No nosso sistema constitucional o Ministério Público é a entidade que representa o Estado e a quem cabe defender a legalidade democrática e exercer a acção penal. Desde 1978 que o MP é uma entidade autónoma, no sentido em que não depende de qualquer dos órgãos de soberania. E é aqui que reside o cerne da questão: de facto, nem sempre assim foi e há quem entenda que o Ministério Público não devia ser autónomo e que devia depender directamente do governo, como anteriormente acontecia.
No tempo da monarquia, e mesmo durante a monarquia constitucional, o MP dependia do rei ou dos governos deste e, no período da Iª República e do Estado Novo, também dependia directamente do governo. Era o Ministro da Justiça quem nomeava o PGR e os procuradores, que recebiam ordens directas do ministro, mesmo sobre a condução dos processos. O Ministério Público era, assim, uma mera emanação do poder executivo junto dos tribunais, eles próprios muito limitados na sua independência, embora formalmente independentes.
Com o 25 de Abril, toda a organização judiciária sofreu profundas alterações, diminuindo drasticamente a capacidade do poder político em interferir no poder judicial e também no MP. A partir de 1978 deu-se o reconhecimento na lei da autonomia do MP, conceito que foi aprofundado com as sucessivas revisões constitucionais e alterações da respectiva lei orgânica.
Hoje, o Ministério Público é uma entidade constitucionalmente autónoma em relação aos órgãos de soberania – parlamento, governo e tribunais – isto é, não depende de qualquer deles, estando sujeito a diversos mecanismos de fiscalização externa e de auto-regulação, designadamente através do Conselho Superior do MP, do qual fazem parte, além do PGR e de membros eleitos pelos próprios magistrados, também representantes da Assembleia da República e do Ministro da Justiça.
Está instituído, assim, um sistema complexo de auto-regulação da estrutura do MP que, em princípio, impede a sua instrumentalização pelo poder político e lhe garante a necessária liberdade de actuação. Ao mesmo tempo, existe um elevado grau de autonomia interna, que permite que cada magistrado tenha liberdade de actuação, naturalmente dentro dos limites da lei. Embora a estrutura esteja hierarquizada, os magistrados do MP devem obediência à lei e podem recusar-se a cumprir ordens dos superiores hierárquicos se as considerarem ilegais ou contrárias à sua consciência jurídica.
Este duplo sistema de autonomia - externa e interna - destina-se a garantir que a actuação do MP, em cada momento, será sempre pautada por estritos critérios de legalidade e sem sujeição a pressões exteriores, nomeadamente de outros poderes.
O nosso sistema de autonomia do MP é singular em termos europeus, apenas se encontrando em Itália um sistema com um grau de autonomia superior ao nosso. Por outro lado, em Espanha, ou em França, o MP não dispõe da mesma autonomia que o MP português, continuando muito dependente do poder político. Mas, é bom dizê-lo, nestes países as funções do MP também são muito diferentes das do seu congénere português, a começar logo pela direcção dos inquéritos criminais que, em ambos os países, é exercida por juízes de instrução criminal
Em resumo, o sistema de autonomia português faz a síntese entre os sistemas em que o MP é completamente independente, como em Itália, dos sistemas em que esta magistratura depende directamente do poder político, como em França ou na Alemanha. É um sistema equilibrado, que confere aos cidadãos garantias de não interferência do poder político nos processos judiciais, mas que não corta completamente a ligação com este, mantendo permanentemente abertos canais de comunicação com o Parlamento e com o Governo.
A «governamentalização» do MP comportaria elevados riscos, como o da politização da justiça. A garantia de não interferência do poder político nos processos judiciais diminuiria e, a cada caso, criar-se-ia a suspeição de que certos processos poderiam ser iniciados ou arquivados em função dos ventos políticos que no momento soprassem. E esta suspeição seria particularmente grave nos processos que envolvessem gente ligada à política e em caso de crimes graves como, por exemplo, os de corrupção.
Qualquer alteração no sentido de limitar a autonomia de que o MP hoje beneficia, conseguida através de um processo dinâmico de revisão da Constituição e de aperfeiçoamento das leis verificado ao longo dos últimos 30 anos, seria um retrocesso grave em termos de direitos e garantias, dos cidadãos.
É claro que nem tudo vai bem no funcionamento do Ministério Público, mas não é pela via do cerceamento da sua autonomia que se conseguirão obter as melhorias necessárias. A orgânica do MP deve ser melhor adequada às suas funções, os seus quadros e meios devem ser melhor geridos e aproveitados, a sua articulação com as polícias deve ser efectuada noutros moldes e o controlo democrático sobre o seu funcionamento deve ser aprofundado, mas mantendo a autonomia de que hoje goza e que não é um privilégio de qualquer corporação mas apenas e tão só um meio de garantia da existência de um verdadeiro Estado de Direito e de uma melhor justiça para todos os cidadãos.
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