28 dezembro 2004

Julgar

[...] Nunca prestara contas a ninguém das suas acções de julgador; ninguém, aliás, lhas podia exigir. O seu trabalho tinha sido inspeccionado muitas vezes, mas isso era diferente: o inspector não passava de um técnico, aliás um colega, a avaliar o trabalho de outro técnico. Se as pessoas por ele julgadas não concordavam com as suas decisões havia sempre uma solução - o recurso. Toda a organização judiciária estava tão bem arquitectada que a responsabilidade do juiz, em si, nunca vinha ao de cima. Tudo quanto fizera até esse momento estava certo, tecnicamente rigoroso como uma longa operação aritmética. Para ele a Vida cristalizava no próprio momento em que as leis eram publicadas e ficava prisioneiro desse sistema lógico, até à aparição de outras leis. A realidade, o quotidiano eram para ele ingredientes pobres: - mero pedaço de barro em cujas dobras moldava as suas lucubrações. Cada sentença, cada despacho seus eram acima de tudo um pretexto para brilhar, para se valorizar. Enquanto o médico actua sobre o doente com vista à sua cura, o Prado utilizava o concreto para realmente o desfigurar, espartilhando-o em abstracções sucessivas, até o descarnar, amputando-o do cerne da relação dialéctica. [...]

Conselheiro Sá Coimbra
A Chancela, Editorial Inova / Porto, 1978

1 comentário:

Primo de Amarante disse...

Princípio de mandato de Peter:

"Conhece-se um homem pela empresa que o mantém ao serviço"