03 dezembro 2004

Um discurso claro e frontal

O Ministro da Justiça, José Pedro Aguiar-Branco, proferiu hoje, no II Encontro do Conselho Superior de Magistratura, em Faro, um discurso sem papas na língua.

... «Ninguém viu e ninguém verá, nos meses que sobejam de exercício de funções, o Ministro da Justiça a falar por interposta via de notícias de jornal, de sites ou de blogues, de cartas secretas ou reservadas, anónimas ou colectivas, de ameaças veladas, difusas ou efectivas.

O Ministro da Justiça tem um conceito elevado da responsabilidade das funções que exerce e nutre um profundo e escrupuloso respeito pela magistratura portuguesa.

Não pode, por isso, por respeito às funções de soberania que exerce e por dever estrito de natureza institucional e constitucional responder a remoques, a acusações ou a insinuações — algumas delas, torpes, impróprias das altas funções exercidas, quiçá passíveis de censura criminal.

Não pode, porque, por ser titular de um órgão de soberania, se impôs a si mesmo um dever de reserva.

Não pode, porque, por conhecimento de décadas dos juízes portugueses e do seu apego à independência e ao cumprimento da lei, não acredita que os magistrados se revejam em atitudes e posições daquela índole e daquele jaez.»...
A ler aqui, integralmente e sem deturpações.

1 comentário:

António Balbino Caldeira disse...

Deu trabalho, mas aí está um favor ao Ministério da Justiça. O discurso do Ministro sem uns sinais esquisitos que apareciam no texto (quem terá deixado passar um texto assim?). É que a versão disponível pelo MJ é muito difícil de ler. Se o Incursões quiser, tem o meu consentimento para o publicar no corpo do blogue.

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II ENCONTRO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

DISCURSO DO
MINISTRO DA JUSTIÇA

FARO, 3 DE DEZEMBRO DE 2004

Nota: só faz fé a versão efectivamente proferida


1. Invocações protocolares — lista de personalidades.

2.
Senhoras Juízas e Senhores Juízes,
magistrados judiciais portugueses:
Julgo que se impõe nesta sede, nesta precisa sede — a de uma importante iniciativa promovida pelo Conselho Superior da Magistratura —, falar directo e falar claro.

Falar directo e falar claro, mas nos canais próprios, através dos meios institucionais e em ocasião propícia, como é o caso desta.

Ninguém viu e ninguém verá, nos meses que sobejam de exercício de funções, o Ministro da Justiça a falar por interposta via de notícias de jornal, de sites ou de blogues, de cartas secretas ou reservadas, anónimas ou colectivas, de ameaças veladas, difusas ou efectivas.

O Ministro da Justiça tem um conceito elevado da responsabilidade das funções que exerce e nutre um profundo e escrupuloso respeito pela magistratura portuguesa.

Não pode, por isso, por respeito às funções de soberania que exerce e por dever estrito de natureza institucional e constitucional responder a remoques, a acusações ou a insinuações — algumas delas, torpes, impróprias das altas funções exercidas, quiçá passíveis de censura criminal.

Não pode, porque, por ser titular de um órgão de soberania, se impôs a si mesmo um dever de reserva.

Não pode, porque, por conhecimento de décadas dos juízes portugueses e do seu apego à independência e ao cumprimento da lei, não acredita que os magistrados se revejam em atitudes e posições daquela índole e daquele jaez.

3.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
O estatuto constitucional dos juízes é o de titulares de órgãos de soberania — em dignidade, iguais aos restantes: Presidente da República, Deputados à Assembleia da República, Membros do Governo.
Cada juiz desempenha, pessoal e individualmente, funções de soberania em nome da República Portuguesa, cada juiz desenvolve, de modo independente, a função jurisdicional.
Por isto mesmo, os juízes estão habituados a ouvir, apreciar e julgar individualmente, sem intermediários, em contacto directo com a prova, os factos.

É justamente a essa capacidade profissional e pessoal — a essa competência, como se diz na moderna psicologia — que apelo, para se avaliar a doutrina, o programa e a política deste Governo em matéria de justiça.

4.
Durante largos anos, o poder político foi acusado, na opinião pública e por entre as profissões jurídicas, de — com um ou com outro pretexto — se desembaraçar das suas responsabilidades na área da justiça.
A emergência de casos altamente mediatizados agravou ainda mais esta sensação de abandono do sistema judicial aos seus directos protagonistas — às profissões jurídicas —, as quais foram, todos o sabemos, largamente maceradas na opinião pública.
Tudo isso decorreu como se não houvesse uma cadeia de legitimidade política e constitucional previamente definida, como se não existisse um quadro processual politicamente chancelado.
Deste processo de mediatização extrema, saiu altamente lesada a confiança da comunidade dos cidadãos no sistema judicial.
Perante essa evidência de abandono e de desresponsabilização, tem indeclinavelmente de perguntar-se: não constitui um dever do poder político reafirmar e reforçar a confiança e a legitimidade do sistema?
Não deve — com estrito respeito pelo princípio do Estado de Direito Democrático e pela independência judicial — assumir perante cidadãos e eleitores a sua responsabilidade originária?

Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Senhores Juízes:
Haverá forma mais clara, mais transparente, mais pública, de dar um sinal à comunidade democrática do que a celebração de um Pacto de Regime entre as forças políticas com expressão parlamentar?
Pacto esse que — sublinhe-se — deverá ser celebrado entre essas forças, mas postula um processo de audição circunstanciada das profissões jurídicas, as quais terão acesso aberto e integral ao teor das negociações a promover?

5.
Alegou-se, por vias travessas e de forma ínvia, que o Governo ocultava ou dissimulava as suas intenções — as verdadeiras, as pérfidas.
E que, por isso, manteria um esfíngico e diáfano silêncio.
Importa aqui registar que o Governo avançou para o Pacto de Regime com a maior abertura e boa-fé, sem tabus, sem préjuízos, sem preconceitos, disposto a promover o mais amplo consenso possível.

Precisamente, por isso, eximiu-se, na primeira fase
— a do estabelecimento da agenda e única que até agora decorreu —, a carrear qualquer visão ou contributo programático que pudesse condicionar, prejudicar ou inviabilizar um futuro acordo.
Foi apenas isso que sucedeu até ao momento — altura em que, por razões da conjuntura política, será necessário indagar da disponibilidade das forças políticas para prosseguirem as rondas negociais.

6.
Minhas Senhoras, Meus Senhores
A propósito da agenda do Pacto de Regime, fez-se ainda propagar a ideia de que o Governo e, em especial este Ministro da Justiça, defenderia a solução do Conselho Único, como órgão constitucional de enquadramento das profissões jurídicas.
Eis o que não corresponde à verdade, que tem de ser aqui formal e solenemente reposta.
No quadro da primeira ronda negocial, mais do que uma força política e do que uma profissão jurídica consideraram importante que se discutisse a organização dos Conselhos Superiores e alguns propuseram mesmo a chamada solução do Conselho Único.
Reitero, para que não fiquem dúvidas: o Governo não tem tabus ou preconceitos na matéria e, por isso, aceita discuti-la.
Mais e ao contrário do que se diz: a solução do Conselho Único — que o Governo, como esclarecerei, não defende — não é nem tem de ser atentatória da independência judicial.

Digo aqui, imbuído da ética de quem repõe a verdade dos factos, estranha e levianamente deturpados, que, nem pessoalmente nem na actual equipa ministerial, se advoga ou alguma vez se advogou a existência de um só Conselho e que, pelo contrário, se preza a diversidade constitucional das magistraturas e a sua estruturação em correspondentes Conselhos.
Julgo que não preciso de dizer mais.

7.
Vem, aliás, a propósito, já que se fala na reposição da verdade, recapitular o processo de nomeação da Senhora Directora do CEJ.
Estou convicto de tal processo mostra bem, urbi et orbi, que o Ministro da Justiça cumpre escrupulosamente os seus deveres institucionais, cumpre, estritamente e ao pé da letra, sem concessões nem informalidades, as imposições legais.
Informou, em primeira mão e sem fugas, quem tinha de ser informado; consultou primeiramente os órgãos que a lei indica como órgãos consultivos.
Não informou nem consultou quaisquer entidades, por maior que seja a sua ligação às matérias em causa, sem que antes tivessem sido informados os membros do órgão consultivo e sem que tal órgão reunisse e produzisse o necessário parecer.

O Ministro da Justiça respeita profundamente a separação dos poderes e a repartição legal das competências — na sua relação com os diferentes órgãos, fora ou dentro do Ministério, não subverteu nem subverterá essa regra de ouro da conduta institucional.

Como pode um magistrado — cuja função precípua se exaure no cumprimento da lei — criticar o Ministro da Justiça, por a haver cumprido rigorosamente?

E passando do lado procedimental da nomeação à substância da formação, afigura-se necessário deixar — com lhaneza e honestidade — algumas perguntas.

Pode alguém sustentar com foros de plausibilidade e seriedade, que a nomeação de um não magistrado para a Direcção do CEJ representa um atentado à independência judicial e uma tentativa de controlo da formação?

Pode fazê-lo, sabendo que o Director está rodeado de Directores-Adjuntos que são magistrados de profissão e que uma parte importante da formação se faz nos tribunais junto de magistrados formadores?

Pode fazê-lo, sabendo que tal mandato tem a duração de três anos — e não da eternidade — e que o perfil da pessoa em causa é unanimemente reconhecido?

Pode fazê-lo, passando um atestado de menoridade e de embotamento aos licenciados auditores?

Senhores juízes, insisto: será sério e plausível ver aí uma ameaça tentacular e uma intromissão intimidatória?

Não será mais curial reconhecer que, ao fim de 25 anos, é importante arejar e dar novos horizontes à formação de magistrados?

Não será mais curial ver aí uma oportunidade de renovação dos conteúdos, de abertura a novos saberes e a novas atitudes, de profícuo diálogo interprofissional?

Não estará a nossa magistratura judicial, ao fim de trinta anos de democracia, suficientemente madura para conviver, sem peias nem complexos, com uma solução deste tipo?

É que, minhas senhoras e meus senhores, a formação dos magistrados — judiciais ou do ministério público — é uma matéria, é um assunto da cidade, da polis, da sociedade, do Estado.
Não pode reconduzir-se a um mecanismo endógeno ou circunscrito às magistraturas, num reflexo de pura autolegitimação, ainda que tal mecanismo se tenha por impecável.

Os cânones da formação dizem respeito às magistraturas, mas concernem também à comunidade dos cidadãos, ela não pode ser afastada do processo formativo dos magistrados e, em especial, dos juízes, titulares que são de órgãos de soberania.
Tudo isso, obviamente, no mais rigoroso respeito pela independência judicial e pela autonomia do ministério público, em todas as suas vertentes: — independência e autonomia externa, mas também independência e autonomia interna; — independência e autonomia subjectiva; mas outrossim independência e autonomia objectiva.

8.
Senhor Vice-Presidente,
Senhoras Juízas e Senhores Juízes,
Sei que vão dedicar estes dias a debater a reforma da acção executiva e o segredo de justiça e dever de reserva.
Inicialmente pensei em trazer-lhes aqui as linhas principais do plano de contingência que o Ministério gizou para lidar com algumas das conhecidas dificuldades da reforma da acção executiva.
Linhas que serão prosseguidas, determinadamente, até à cessação de funções do presente Governo.
Considerei, no entanto, que seria mais importante e mais estruturante deixar aqui as traves-mestras do pensamento e da doutrina que inspirou esta, agora abreviada, passagem pelo Ministério da Justiça.
Há termos e formas de pôr os problemas que não podem aceitar-se, que vão da expressão «ajuste de contas» à impostação «de uma estratégia global de agressão à magistratura», que só podem trazer menoscabo a quem as usa.
Um político e jurista de boa-fé, empenhado no serviço público, que presume conhecer os magistrados judiciais portugueses, a sua independência e a sua saudável cultura de grupo, não se conformará nunca com o uso gratuito — seja para que fins for — de tão inusitada linguagem.

Tudo o que me recorda as sábias palavras de Camões, na estrofe 38 do Canto I de «Os Lusíadas»:

«Não ouças mais, pois és juiz de direito
Razões de quem parece que é suspeito».