“É preciso começarmos por dizer a nós próprios e por convencer-nos de que não temos mais nada a fazer neste mundo, para além de nele procurarmos sensações e sentimentos agradáveis. Os moralistas que dizem aos homens “reprimi as vossas paixões e dominai os vossos desejos se desejais ser felizes” não conhecem o caminho para a felicidade. Só somos felizes mediante gostos e paixões satisfatórias; [digo gostos] porque não somos sempre felizes o bastante por termos paixões e porque, à falta de paixões, não resta senão contentarmo-nos com os gostos. Seriam, pois, as paixões o que deveríamos pedir a Deus, se ousássemos pedir-lhe alguma coisa; e Le Nôtre tinha toda a razão em pedir ao Papa tentações, em vez de indulgências”.
MADAME DE CHÂTELET
Discurso sobre a felicidade (1746/1747)
27 dezembro 2004
UMA CITAÇÃO
Marcadores: Rui do Carmo
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Convém recordar o contexto. Voltaire vive o drama de uma legislação “ad hominem”, visando combater os protestantes. E essa legislação era um instrumento de legitimação da acção da Inquisição.
A escritora madme Chatelet (Émile Le TONNELIER DE BRETEUIL, marquesa du), nascida em Paris,1706,e falecida em Luneville, 1749,não só foi amiga de Voltaire, como também inspiradora e protetora. Depois de Voltaire ter escrito "Cartas Filosóficas" e, por via desse facto, perseguido tenazmente, foi a Marquesa que o escondeu da fúria inquisitorial no seu castelo de Cirey. Diz-se que inspirou o "Tratado sobre a Tolerância" de Voltaire -- um sobressalto cívico contra o fracasso do édito de Nantes e de repulsa pelo "caso Jean Calas", um velho homem a quem é vedado o acesso ao curso de advogado por ser protestante. O Santo Homem, embora muito desejasse ser advogado,foi fiel às suas crenças e recusou a proposta de aderir ao catolicismo para frequentar o curso.
A Marquesa era uma das mulheres mais lindas do seu tempo. E isso confirmará o ditado que diz que por detrás de um homem célebre (como François Marie Arouet) haja sempre uma mulher bela» e um outro que diz "a beleza amansa a fera". De facto, ninguém pode ficar de boca aberta perante uma beldade e ao mesmo tempo em ira. Por todas estas razões, não são de estranhar as considerações que a Marquesa faz sobre os sentimentos e as sensações e que o meu amigo tão oportunamente transcreveu.
Bendita sejam, por isso, todas as mulheres belas, concordará comigo?!...
A sua perspicácia, compadre Lemos, tem toda a legitimidade.As paixões, como parece querer dizer o compadre carteiro, são capazes de a tudo nos levar. Mas, como sabe melhor do que eu, nem tudo o que parece legitimo pode ser assegurado como verdadeiro.
Convém recordar que, por contestação à metafísica, esse tempo exaltava as emoções e os sentimentos naturais. Por alguma razão David Hume escreve, por essa altura, os "Diálogos sobre a religião natural" e no seu escrito "Ideia de uma república perfeita", onde se apoiaram os seus "Ensaios Políticos" procura defender uma teoria da justiça (e do poder)baseada no método indutivo ou, talvez melhor,experimental(no sentido sensitivo). A própria moral tem como critério de avaliação dos comportamentos o sentimento de aprovação. Pela primeira vez surge uma moral que rompe com o normativismo formal e se abre ao consequencialismo que avalia as acções em função das consequências previsiveis ou dos sentimentos despertos. Por ex.,o bem tornou-se num sentimento de aprovação. Ficam já aqui os pressupostos do que consubstanciará, no nosso tempo,a ética aplicada.
Depois de fazer o último comentário, tive saudade das aulas de Filosofia, do prazer que sentia, quando os meus alunos descobriam a importância do modo de ver a vida, os outros e o mundo na orientação das suas próprias vidas. E notei que me tinha esquecido de estabelecer uma conexão entre as preocupações com as emoções e o conceito de bem-estar. Um bem-estar que, no tempo de Voltaire, tinha a ver com a natureza natural do homem (explorada por um outro pensador dessa altura, Rousseau --mito do bom selvagem) e com os direitos naturais (de que falou Lock). E como tudo isto teve repercursões no desenvolvimento de uma nova concepção do homem e no emergir de uma nova ciência, a que Adam Smith, amigo de Hume, nesse tempo começou a teorizar. De facto, se a sociedade, tal como tradicionalmente estava estabelecida, era má, o melhor era atribuir ao trabalho (como expressão genuina do querer)o valor natural capaz de produzir riqueza e organizar uma sociedade mais justa. Todos reconhecemos que a importância deste paradigma foi claramente sublinhada por Weber na "Ética protestante e o espírito do capitalismo"!
Ser professor, sempre foi para mim, dar testemunho da procura de um saber e entender os alunos como companheiros dessa viagem, uma viagem que acaba por nos ajudar a estabelecer uma rede de compreensões. E é nesta rede que entendemos as portas que se vão abrindo ao futuro e somos capazes de olhar de forma distanciada o presente, a não "engolir" , como se fosse um fatalismo, tudo o que nos querem enfiar. Só a compreensão do relativismo histórico das redes que configuram sistemas de crenças pode desenvolver nos alunos uma atitude critica. Ficava satisfeito, quando entendiam que o presente foi o passo dado em frente do passado e assim acontecerá com o futuro. E quanto assumiam que o sentido desse passo depende de todos nós. A compreensão disto fazia da aprendizagem um autêntico filosofar . Tenho para mim que o mal do sistema educativo tem duas raízes: a perda de autoridade dos professores e as ciencias ocultas que dão pelo nome de ciências da educação.As que defendem que a atitude critica é levantar levantar o braço e fazer ruído na aula e que o bom professor é o que classifica em função do número de vezes que um aluno levanta o braço. Só serviram para promover a retórica. Hoje, os professores já não ensinam, fazem reuniões, onde, até à exautão, vão-se labirinticamente repetindo.
Desculpem este desabafo, em fim de ano.
Enviar um comentário