Da autoria da Drª Isabel Batista, Juiz de Direito no Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, publicamos, com a devida vénia, este oportuno artigo:
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem
Mais uma página da nossa História se vira. Mais uma vez nos preparamos para a Mudança. O dicionário define o vocábulo MUDAR como “tornar ou ficar diferente; causar ou sofrer mudança, em qualquer aspecto.” Ora no que à Justiça concerne, sucessivamente os governos que se alternam anunciam a sua vontade de tornar diferente o panorama deprimente em que se tornou o mundo judiciário nas suas mais diversas áreas. Trinta anos depois de Abril esta realidade é apenas um “Cadáver adiado que procria”
Legislatura após legislatura a eterna e proclamada reforma da Justiça se tem confinado à elaboração de uns tantos diplomas legislativos, os quais, na sua maioria, nem primam pela clareza, e muito menos pelo respeito pela coerência sistemática. É, se é certo que, por um lado, a acumulação de textos legislativos contribuiu para a transformação das práticas judiciais, a proliferação dos textos que se acumulam em camadas sucessivas, estão a um passo de se transformar numa ameaça para a sua própria essência. A sua complexidade cria “blocagens”, confusões mentais, apodrecimentos como acontece nos lagos que abarrotados de plantas artificiais, são votados à entropia. As omissões e as contradições dos textos legislativos, a sua incompreensão pelos aplicadores e destinatários chamaram a atenção de sociólogos, como o Professor Boaventura Sousa Santos.
Não restam dúvidas de que o poder político se toma e se exerce através da faculdade de legislar.
Mas porque não teve o poder político o arrojo bastante para abalar a estrutura arcaica que espartilha a Justiça?
Alguns exemplos: O mapa judiciário traduzirá a realidade sócio-geográfica do país? A resposta é evidente! Basta olhar para os mapas distribuídos pelo Ministério da Justiça. Sendo como é conhecido o êxodo das populações de certas zonas do país como se justifica que se investiam meios materiais e humanos com a manutenção de determinados Tribunais quando depois se acumulam processos em tantos e tantos por falta desses mesmos meios?
As salas de audiência respeitarão os princípios constitucionalmente consagrados? Mais uma vez a evidência da resposta se impõe.
A arquitectura judicial plagia a construção religiosa, até mesmo, nos frescos alegóricos existentes em alguns tribunais. O simbolismo impõe-se a despeito das mais pequenas comodidades dos intervenientes processuais. Se o presidente do Tribunal quer transmitir ou fornecer qualquer elemento ou fazer qualquer consulta (a qual não pode ser feita por recurso aos meios informáticos de que não dispõe na sala) será necessário que o escrivão se levante ou que o presidente se debruce da sua mesa. Um arguido ou uma testemunha que traga notas organizadas documentalmente, arrisca-se a todo o momento a espalhar os papéis no chão, por não dispor de um simples banco de apoio; é-lhe impossível, a fortiori, tomar quaisquer notas. Numa audiência do foro penal se o arguido quiser consultar o seu defensor, o público pode assistir a alguns movimentos de ginástica.
Nenhuma atenção é dada ao público! Mas o artigo 202º nº 1 da Constituição da República Portuguesa consagra que os Tribunais administram a Justiça em nome do Povo.
Então porque será que mesmo instalando-se na primeira fila dos bancos que lhe são reservados o Povo tem apurar o ouvido para captar parcelas de diálogo necessárias à compreensão dos debates, pois quer se trate da circulação automóvel, quer se trate dos trabalhos quase permanentes no interior do Tribunal, o silêncio não é uma regra nas salas de audiência?
Também é verdade que tudo isto raramente incomoda os actores entre si, sempre suficientemente próximos para comunicar, forçando a voz, se necessário, para se sobrepor ao barulho dos martelos pneumáticos e ao roncar dos camiões. O Povo, esse insiste em ficar, apesar dos bancos desconfortáveis que lhe são reservados! Toda esta procissão vem morrer aos pés dos juizes. A ordem dos lugares estatutários que reproduz a ordem da iniciação aos mistérios judiciais, irradia de um centro vazio, onde se vêm expor os arguidos, os réu, as testemunhas, os peritos...
Os recursos humanos, matéria prima primordial para a Justiça, são realidade ignorada pelos sucessivos Ministros.
Tudo se passa como nos séculos XIX e XX.
Não existe qualquer política definida para a gestão de pessoal, seja pessoal administrativo, seja dos próprios titulares dos órgãos de soberania. Como ignorar que em Abril de 1974 a proclamação da não discriminação em função do sexo permitiu o acesso de mulheres à Magistratura e lhes garantiu o direito de continuarem a ser mulheres. Então onde está a planificação desta realidade tendo em conta que as mulheres engravidam, têm filhos, dão-lhes assistência? Porque será que recorrentemente há tribunais sem magistrada devido a factores que, por serem biológicos têm de ser considerados numa gestão integrada dos recursos. Quantas empresas privadas resistiriam a uma lógica organizacional semelhante à do Ministério da Justiça. Resposta fácil! Nenhuma!
Não há gestão de pessoal, digna desse nome, logo não há política salarial conforme. Como se explica o mesmo vencimento para quem tem 300 processos como para quem tem 3 000?
Onde está a formação profissional para os profissionais forenses aos mais diversos níveis?
Onde estão as regras de avaliação profissional dos diversos operadores judiciários sujeitas a critérios científicos, rigorosos e transparentes, impeditivas de compadrios e arbitrariedades?
Onde se encontra o debate interdisicplinar sobre diplomas que pela sua natureza fazem apelo a intervenção de diversos ramos do conhecimento e, consequentemente de profissionais diferentes, quantas vezes com diferenças conceptulógicas ou semânticas de abordagem dos problemas?
Profanação da instituição, sobrecarga dos magistrados e dos funcionários judiciais, proliferação de textos jurídicos e parajurídicos, tudo tem, paulatinamente transformado as condições do exercício da Justiça.
“... o poder judiciário, carecendo de autonomia financeira e administrativa vê-se dependente dos outros poderes para se apetrechar dos recursos que considera adequados para o bom desempenho das suas funções. ”
“os tribunais estão à mercê da boa vontade de serviços que não estão sob sua jurisdição e, sempre que tal boa vontade falha, repercute-se directa e negativamente na própria eficácia da tutela judicial”
E o poder político?
Prepara nova campanha eleitoral.!
Proclama com desfaçatez que a ser eleito realizará o que não realizou quando esteve no poder!
Para cada acto eleitoral se elaboram programas de governo onde se enunciam as Reformas. REFORMA, voltando à definição do vocábulo, é a “reparação ou conserto do que é antigo ou se encontra danificado ou inutilizado” .
A política para a Justiça é tão antiga que se atentarmos num texto de Fialho de Almeida poucos somos capazes de encontrar diferença entre a realidade nele descrita e a actual.
“Ficam da esquerda para a direita, perto do púlpito do senhor juiz, as carteirinhas destinadas ao ministério público e advogados. A sala é tão estreita que todos estes funcionários se acotovelam uns aos outros, as rés, advogados, juiz e demais comparsaria na sala, incluindo os jornalistas que escrevem sobre tiras de almaço as suas impressões” (...)
Urgia quem ousasse proclamar que no sector da Justiça realizaria mudanças profundas, mudanças radicais que alterassem uma estrutura que permanece intocável há dois séculos: que se atravesse a fazer uma REVOLUÇÃO ..
“... as reformas que não alteram a organização não resultam numa verdadeira reforma, mas unicamente em compensações e ajustamentos entre os seus membros”
Por isso, tal Velho do Restelo, apetece-me perguntar aos Céus,
“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhes destinas
Debaixo dalgum nome proeminente”
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