Há palavras que custam a pronunciar, que nos arrepiam, que nos doem mas que, chegado o momento, têm de ser ditas. Auschwitz é uma delas. Majdanek, Treblinka, Sobibor são outras, iguais e diferentes. Sessenta anos depois, interrogamo-nos todos como foi possível. Como se não soubéssemos... Como se não tivéssemos aprendido que o desastre de 14-18 além de destroçar a Europa, deixou uma sementeira de ódios e uma geração de sobreviventes e criminosos que nunca esconderam as suas ambições e tão pouco a sua solução para os problemas herdados da guerra. Que essa solução se reduzisse ao pagamento de indemnizações de guerra (com a ocupação do Sarre como garantia...) ou pela criação de nações tampão que nem ao século XXI conseguiram chegar, ou por uma outra mais simples e mais dramática "solução final" pouco parece importar aos actuais "comemorantes" da libertação de Auschwitz.
É um tanto ou quanto estranho, porém, que se fale apenas, ou quase só, da "Shoa", do trágico, infame, indizível destino de seis milhões de judeus. Ninguém duvida que foram eles que constituíram a maioria das vítimas ou, pelo menos (não há números exactos) uma forte percentagem das vítimas. Mesmo que o seu destino viesse já anunciado no "Mein Kampf", obra que, pelos vistos, foi muito pouco lida por todos quantos ela afinal se dirigia, isto é pelas vítimas apontadas a dedo, designadas como não arianos, sub-humanos, inimigos do Reich milenário, mão de obra barata no novo espaço vital.
Convirá nunca esquecer - será que alguma vez o soubemos, a sério? - que a aventura hitleriana foi gerada na "pálida mãe" Alemanha mas teve muitos pais e um não menor número de padrinhos. Desde um ex-socialista chamado Benito Mussolini, que deu a Hitler a "teoria" que ele não tinha, aos cavalheiros das chamadas democracias que lhe permitiram todas as aventuras. E não se esqueçam os colaboracionistas de todos os géneros e países que da Ucrania à Croacia, da França à Grécia ou à Polónia colaboraram briosamente na caça ao judeu e ao dissidente político. E é bom que se relembre que nesta baça tragédia de infâmias múltiplas um país houve que defendeu os seus cidadãos de confissão judaica em bloco usando a estrela amarela: a Dinamarca onde até o rei a usou.
Foi o Anschluss, a guerra de Espanha, o caso dos Sudetas... Isto sem falar de algo que mesmo antes da guerra era perfeitamente conhecido: as leis "raciais" ditas de Nuremberga onde se apontavam as raças a abater. Por exemplo os negros de que ninguém fala e que terão totalizado cerca de 50.000 mortos nos campos. Trata-se de negros alemães vindos das antigas colónias nomeadamente da actual Namíbia e do Tanganika. Em termos de genocídio poder-se-á afirmar que neste capítulo e graças à cor da pele a tarefa teve uma taxa de êxito praticamente total: calcula-se que os sobreviventes não ultrapassarão os 5%. Quanto aos ciganos, já há um que outro comentador (ao fim e ao cabo eram europeus, ou melhor, frequentavam a Europa) a apontar a tentativa de liquidação maciça de que foram alvo. A sorte deles foi terem desde sempre uma história de fuga ao perigo, de inata e visceral desconfiança frente ao estado, á administração e ás polícias. É provável que nem um cigano tenha tido a ideia peregrina de pensar que seria poupado se fosse apanhado, se se deixasse acantonar numa região, numa cidade ou num campo. São inúmeros os relatórios policiais nazis a referir a "má vontade" dos ciganos a deixarem-se conduzir ao matadouro.
Conviria, sem nunca perder de vista a tragédia da Shoa, relembrar que os campos de concentração (invenção inglesa por altura da guerra dos boers...) começaram por ser povoados por oponentes políticos, nomeadamente os comunistas e os socialistas alemães que tiveram a duvidosa honra de estrear os campos juntamente com criminosos comuns e homossexuais, os da estrela cor de rosa.
Cai bem lembrar que, por ter fornecido vistos aos fugitivos (judeus e não judeus...), o cônsul Aristides de Sousa Mendes perdeu o emprego e a parca fazenda...
Auschwitz (e o resto....) foram e são o resultado de uma longa deriva ideológica nascida, criada e fortalecida na "nossa" Europa e exportada para o resto do mundo onde nunca lhe faltaram importadores entusiásticos e criativos: num campo do Burundi, na antiga escola de mecânicos da armada na Argentina, nas florestas do Cambodja ou na cadeia de Guantánamo....
m.c.r
01 fevereiro 2005
Auschwitz e o resto
Marcadores: mcr
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2 comentários:
Que belíssimo regresso! Parabéns, MCR!
Um texto sem dúvida inquietante e que também nos poderia transportar até à Sérvia, ao Kosovo, à Arménia, ao Azerbeijão, ou seja, às portas da democracia e das garantias tidas como adquiridas da civilização e da cultura ocidental.
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