Na escada rolante de um shopping em mês de saldos nos encontrámos, eleitora indecisa e amigo esclarecido, um a ir para baixo, o outro a vir para cima, ela pensativa com os olhos pregados no movimento dos degraus, ele a olhar, de queixo levantado, para um cume improvável. E conversaram na oposição dos movimentos.
Eleitora indecisa:
Ó amigo esclarecido, ainda bem que te encontro, estou num transe! Tens de me ajudar! Imagina que eu, que me tinha por pessoa sensata e até já tinha dito mais ou menos publicamente que votar Sócrates nem pensar, que o rapaz anda em más companhias (confirmado pelo Anaximandro) e é preciso entalar os grupos de interesses, tive um vipe ali ao passar no Campo Grande: o Sócrates em close-up, a olhar para MIM, com um sorriso maroto mas decente, o olhinho a brilhar e o nariz convenientemente desalinhado, charme acrescido claro, que a imperfeição é que dá o sainete. Foi instantâneo: dei comigo a pensar que tinha de votar no PS, o Sócrates merecia o meu voto!
Amigo esclarecido:
Estás a falar do rapaz e não da política do rapaz. Ou seja, de convencimento de passante, para quem são feitos os “outdoors”. Quais as comparações possíveis a este nível? O Portas, sempre muito assertivo, de feições; o Louçã, naquela cara de equidistância entre as novas problemáticas e o proletariado em extinção; o Jerónimo, que é o sociologicamente mais parecido com todos nós. O que quer dizer que não é pela pinta que lá vamos!
Eleitora indecisa:
E eu não sei?! Claro que sei, por isso mesmo é que estou em transe! Como é possível que isto me esteja a acontecer a MIM?!
O que vale é que, depois desse encontro imediato de virtualíssimo grau, já vi o rapaz na TV e o efeito do close-up desvaneceu-se bastante. Mas em contrapartida, à conta do debate com o PSL, dei por mim a querer acreditar na boa vontade do rapaz, a entusiasmar-me com a sua segurança, a clareza, a inteligência com que piscou o olho à esquerda e à direita, a convicção que pôs no seu discurso positivo… E ainda pró não chega tinha lido havia pouco um artigo do Vital Moreira no Público, onde ele explicava porque é que se devia dar a maioria absoluta ao PS… ora se não me engano, ainda há pouco este ilustre defendia exactamente o contrário… !
Amigo esclarecido:
Será que ele, entretanto, também viu o cartaz? Era o que diria o PSL ... mas não nos deixemos embalar pelos colos da campanha. O que me parece, querida amiga, é que essa da bipolarização entre PS e PSD, entre o Pedro e o José, não nos vai levar a bom porto. O Pedro não vai lá sem o Paulo – já toda a gente sabe. E será que o José vai lá sozinho? Acho que não, e também que não seria sequer bom que fosse, pois o rapaz é demasiado convencido e nem sequer se consegue distinguir bem do Pedro. Precisamos de meter o Louçã no meio deles. E, afinal, este rapaz, com aquela equidistância, até pode fazer bem esse papel. Pena é mesmo não termos uma rapariga mais capaz de interferir nesta disputa, pois só nos resta a Carmelinda, que carrega a mágoa de nunca ter conseguido ser a madrinha do casamento entre o PS e o PC.
Eleitora indecisa:
O rapaz é demasiado convencido, essa é boa, eu cá não dei por nada, embora ouça dizer por aí… deve ser como a história da existência do pilhão, de tanto ser repetida torna-se uma “verdade” incontestada! E convencidos não são eles todos, afinal? Se não fossem seriam auto-propostos candidatos a primeiro ministro? Olha o Louçã, por exemplo, sempre a pregar-nos lições de moral, com aquele ar de virgem intangível! Propostas, fala-me das propostas e de credibilidade, se não continuamos ao nível da escolha outdoor e por aí o José já ganhou o meu voto! Explica-me porque é que eu e pessoas como eu, que ao contrário do que afirmavas há pouco, não estão nada sociologicamente próximas do Jerónimo de Sousa, hão-de (voltar a) votar no Bloco?? Do ponto de vista da economia do país (crescimento, emprego…) se as propostas deles fossem levadas à prática era o descalabro, ou não era?! E nas principais questões emblemáticas que lhes deram visibilidade (despenalização do aborto, combate à fraude fiscal…) a maior parte do trabalho está feita, até o PSL mostra abertura à 1ª e o Sócrates, correndo o risco de assustar o eleitorado do centro, acena com a necessidade de alargar as hipóteses de quebra do sigilo bancário!
Amigo esclarecido:
Acho que estás a ir mais longe do que os candidatos! Que estão ao nível do outdoor! Não vale inventar o que eles querem mesmo! A questão continua a situar-se na superestrutura política: ou queremos a bipolarização PS/ PSD, à americana; ou queremos o multipartidarismo e o pluralismo daí decorrente. Ou queremos a perpetuação do centrão (pois, ainda por cima, no nosso país, para distinguir o PS de José e o PSD de Pedro temos de jogar ao “descubra as diferenças” – e tanto as podemos encontrar, como não, de tão subtis que são) e a manutenção da satisfação dos interesses de que se alimentam e que alimentam, ou queremos mudar, mesmo que esse mudar signifique, de imediato, apenas que os poderes instalados se sintam menos instalados. Cara amiga seduzida por Sócrates, preocupada com a saúde da economia, preocupa-te mais com a saúde da nossa democracia, que é essa que nos pode fazer evoluir. O Sócrates que governe – é o destino dele – mas com “cães à perna”! Dos papões da instabilidade e do remédio do voto útil já tenho dose que chegue!
Eleitora indecisa:
Pois, lá isso é verdade, não vale a pena inventar o que eles querem mesmo – o que me livra de remorsos de não ler os programas todos de fio a pavio… apesar de eu achar que, apesar de tudo, há diferenças, e notaram-se no debate, vá lá, não convém exagerar! Agora essa moda de apresentar os futuros ministros na campanha é que se calhar resolvia o meu problema. O Bloco não apresentava nenhum, porque não se assume como partido de governo e o Sócrates era capaz de apresentar o Alberto Costa como ministro da justiça e aí, para além de ter de ultrapassar todas estas dúvidas de eleitora sociologicamente classe média-alta com coração à esquerda, ainda tinha que digerir mais essa.
Percebo a utilidade de “ter os cães à perna”, claro, aliás sabes bem que comecei por defender que nestas eleições o voto útil era precisamente nos cães e não na perna… mas depois ponho-me a pensar que já é tempo de termos um governo que leve as coisas até ao fim, que não tenha que negociar cada diploma com um qualquer limiano ou que tenha de desvirtuar cada uma das suas propostas por cedências constantes ora à esquerda ora à direita! Não será isso melhor para a nossa democracia? É que quanto à teia de interesses sempre haverá quem os continue a denunciar, quiçá com mais clareza se não estiver à espera de umas migalhas à mesa das negociações, sei lá!
Amigo esclarecido:
A nossa divergência é que eu não quero um governo que “leve as coisas [este país] até ao fim”! Exactamente isso!
Pelos breves momentos que durou a conversa e nos que se lhe seguiram, a oposição dos movimentos esbateu-se.
O amigo esclarecido seguiu caminho, com o queixo ainda mais levantado, convencido de que a eleitora indecisa não mais levantaria a cabeça para o outdoor encantatório. Engano seu! Como podia ela, ao pressentir o José a olhá-la, deixar de querer exibir um pescoço de garça que disfarçasse o duplo queixo!
6 comentários:
Pouco me interessa (em sentido político e não moral) o estilo ou “modo de ser” de cada candidato. Não vejo que tenha muito interesse para avaliar as consequências políticas do meu voto, fazê-lo depender apenas (e só!) da fulanização. O que me interessa (ainda mais que os programas) é o “modo de ver”, o paradigma, que vai sustentar políticas. O paradigma dos políticos do centrão é o pos-moderno. Este estilo de fazer política é dominante na Europa e, por isso, seria estranho que não o fosse entre nós. Para a os políticos pós-modernos o palco não é o Estado, mas os interesses grupais, de lobbies, e é isso que tem acontecido entre nós, na saúde, na educação, etc. O BE (e de certa forma também o PCP)pode contrariar essa tendência, pois ainda faz política pensando no Estado, com narrativas, utopias, visando o objectivo rousseauista do Estado assegurar a minimização do sofrimento (em vez da "felicidade" de grupos de interesses). Por outro lado, não é claro que maiorias absolutas (ao serviço de interesses grupais) possam gerar mais estabilidade. Só o conseguirão se tiverem o apoio dos trabalhados, dos cidadãos ou, se quisermos, da sociedade civil. Esta, hoje, já se mexe. A retórica do apelo à maioria é,por isso, falaciosa: serve para meter mêdo aqueles que paradoxalmente mais poderão sofrer com essa maioria: a pequena e média burguesia que vive do seu trabalho.Por isso, a sabedoria popular diz: “aquele que segura a asa da frigideira é o que fica pior aviado".
Lipovestsky, criador do conceito "pos-modernidade",caracteriza muito bem o modo de estar e fazer política deste paradigma no seu livro "A era do Vazio". A propósito diz: "valoriza-se o sentimento subjectivo dos actores e desvaloriza-se o carácter objectivo da acção".
Reparem que no tempo em que militavamos em associações, se dissessemos "eu", haveria quem nos lembrasse que o "eu" não interessava, o que interessava era o "nós". O narcisismo não ficava bem, era uma doença do individualismo egoista; agora, é uma arma de sucesso. Isto também nos separa dos políticos pos-modernos, os que tudo conjugam na primeira pessoa, os da era da política espectáculo.
Ó compadre, para que é que foi lembrar esses tempos em que o "eu" não era politicamente correcto? Também os vivi e agora parecem a pré-história, melhor, o jurássico e os dinossauros não sobreviveram, não resistiram à contaminação... por isso a reacção da eleitora indecisa me tocou, ser imperfeito que sou. Mas, pensando melhor, ao que parece os dinossauros deixaram alguns descendentes que evoluiram para outras espécies que mantêm muito do seu código genéticoe, por isso - e afinal! - obrigada compadre pelas mesmas palavras, foi bom relembrar que a plastificação do ser e do pensar não é inevitável.
Ah, já agora - last but not the least - uma saudação de boas vindas ao/s noovo/s contributor/s, ambososdois e parabéns pelas ""entradas". Apareçam mais vezes!
A eleitora indecisa parece considerar que a escolha de Alberto Costa não condiz com a imagem de saber, segurança e equilibrio transmitidaa por Sócrates no debate... pois posso afiançar-lhe que os protocandidatos a muitas outras pastas que já por aí pululam (o cheiro a poder tem destas coisas...), fazem de A. Costa um homem com olho em terra de cegos! A eleitora indecisa que não seja mas é ingénua para além do razoável, pois pelos vistos, atento o duplo queixo, já tem idade para ter juízo.
Todo o voto, mesmo o voto em branco é útil, desde que esteja de harmonia com a nossa consciência. A racionalidade que o apoia é que pode torná-lo intrumental; isto é obedece a razões de meios e não de fins, ou de estratégia e não de programa.
Enviar um comentário