22 fevereiro 2005

UM (meu) TESTEMUNHO DE VIDA


O meu nome é Amélia Pais e fui professora por mais de 36 anos. Vou falar-vos - liricamente dirão alguns - do ofício que escolhi desde criança.

Eu não sei bem o porquê da escolha - suponho que a influência, primeiro, de uma velha tia que me ajudou a criar ( a importância das tias, não é Alçada Baptista?) que, era eu pequenina, brincava comigo, contando-me «histórias», não só de fadas ou de bruxas, mas, e talvez sobretudo, de como se faz o pão, de como crescem as plantas ou se faz a dança dos planetas em torno do Rei Sol - ou de como, em tempos passados, Moisés conduzira o seu povo de regresso ao lar, ou ainda de como Viriato, quase meu conterrâneo, enfrentara os Romanos...Me ensinava, também, os jogos possíveis com os números - ou então com as letras que, juntas, formavam palavras e frases com que os livros se nos abriam para a fantasia.

À distância, vejo agora essa minha tia, que era professora aposentada, como alguém que tornava o aprender algo que dava alegria e vontade de saber mais - e creio que com ela aprendi o gosto de proporcionar a outros essa troca de experiências, de saberes e, talvez, principalmente de afectos, que é o acto de ensinar.

Mais tarde, um outro professor, este de Português, o Dr.Luís Simões Gomes , ensinou-me, com a descoberta dos textos, o sabor e a cor da liberdade - e nesta segunda aprendizagem importante na minha formação, a vontade reforçada de, como ele, ajudar os outros a crescer livres e dignos, como seres que pensam e se pensam.

Assim me fiz, oficial do mesmo ofício, de, como dizia, de há mais de 36 anos para cá. Não lamento a escolha feita - é ofício que exige muito amor, muita abertura ao outro, muita vontade de partilhar, muito entusiasmo (à letra «deus em nós»). Mas que ofício melhor para crescermos e nos enriquecermos durante uma vida inteira?

Sim, eu também sei que economicamente não compensa lá muito (mas, como dizia outro Professor, Agostinho da Silva, faço o que me dá gosto e ainda por cima me pagam para o fazer ...); sei também que muitas vezes - demasiadas vezes até - vêm desencantos, incompreensões, frustrações - porque o quotidiano fica por vezes bem aquém do sonho. Mas que melhor do que ver brilhar os olhos de um aluno quando, connosco, descobre um universo novo? Ou quando encontramos antigos alunos (por vezes pais de actuais alunos, como me vai acontecendo cada vez mais) - que nos recordam como alguém que os marcou positivamente e os ajudou a entrar melhor na vida? (Bem certo é que só recordamos os professores que nos marcaram positivamente ou negativamente, não aqueles que se ficaram por um certo cinzentismo...) Ou antigos alunos que nos associam à descoberta da beleza de um ou mais versos d'Os Lusíadas ou da «Tabacaria» de Álvaro de Campos? Que satisfação maior do que esta de ver-se reconhecido e de nos sentirmos assim ligados à descoberta da beleza e da vida?

E depois é bem verdade que bom professor não envelhece nunca...e não morre - porque fica a sua imagem bem viva na memória e no coração daqueles com quem e para quem viveu...
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(Amélia Pais - actualmente professora aposentada, mas não retirada ...)

12 comentários:

Primo de Amarante disse...

Querida Colega: estou quase nas suas condições - devo reformar-me ainda este mês. Curiosamente, hoje, encontrei dois antigos alunos: de um deles, já não me lembrava. Saudaram-me efusivamente como companheiros; isto é, com aquela saudação amiga de quem fez conjuntamente uma caminhada feliz. Isso vale toda uma profissão. Procurei fazer dos meus alunos companheiros de uma mesma caminhada e muitos deles reconhecem isso. Devo dzer que raramente preparei uma aula. A aula saia-me em diálogo amigo (não conversa de café). Quando fiz estágio tive muitos problemas. Soube que a coordenadora de estágio ía assistir à minha aula e preparei-a com uma representação. Os alunos intervinham para discordarem e me provocarem. Foi inesquecível. Ainda, hoje, há quem recorde essa situação.Adorava que os meus alunos discordassem de mim com argumentos. Nunca inventei contra-argumentos: dizia que ía estudar a questão. Nunca me dei mal com este método. Embora tenha feito alguns manuais (o primeiro manual de Filosofia depois do 25 de Abril é meu), nunca fui seguidista de um manual. Dei-me sempre melhor com a reflexão livre. Hoje, estou no ano zero. Recebo os alunos que são expulsos das aulas. E lembro-me tantas vezes das vezes que eu próprio fui expulso. Uma vez o meu professor da primária fechou-me na sala, enquanto os meus colegas foram para o recreio. A vontade de urinar era tanta que (havia uns tinteiros nos buracos das carteitras) resolvi a questão em cerca de trinta tinteiros. Tudo funcionou até chegar a hora de fazer um ditado. Aí tive de assumir a responsabilidade de uma tinta que se tinha tornado em chi chi. Levei uma tareia monstra. Fiquei preparado para compreender os casos difíceis na sala de aula.
Um abraço para si, deste compadre que nunca trocaria a sua profssão por outra, nem por dinheiro nenhum.

Primo de Amarante disse...

Deixe-me ainda dizer-lhe. Hoje é para mim um dia muito triste: faleceu uma colega e amiga. Mas o seu testemunho fez-me até esquecer isso. Bem haja!

Primo de Amarante disse...

Reparo que dei alguns erros. Espero que não generalizem aos meus colegas...

Silvia Chueire disse...

Amélia,

Vê-la aqui é um prazer. Ler sobre como você (o compadre também ao que parece) exerceu, exerce, sua profissão é uma satisfação nestes dias.

Beijos,
Silvia

Amélia disse...

Gostei de ler as reacções ao meu 1ºpost e de encontrar,para além do compadre esteves,el pbx e olho vivo (obrigada pelo aviso-:)) alguém,o rebeldino anaximandro, que sabe de que falo quando falo do Dr.Simões Gomes, que conheci em Viseu, onde estudei no secundário e onde ele viveu até ir para Lisboa e lá falecer há pouco mais de um ano, ano e meio.
A ele dedico, aliás, o meu 1ºlivro, de 1982, e os 3 volumes da minha mais recente História da Literatura em Portugal(2004/2005), porque ele foi «o meu mestre querido»- e me transmitiu o gosto pelo ofício de viver que tem sido o meu.Com ele aprendi o essencial da literatura e da vida.E desta profissão/trabalho magnífico de ensinar - só lembramos os prof's dee xcelência ou os pestes- dos conzentos não reza a história e muito menos a memória...

Obrigada a todos, incluindo a «velha» amiga e grande poeta Sílvia.
9:02 AM

Primo de Amarante disse...

A minha memória está muito "velhinha", mas suponho que também o conheci no Café "Monte Branco" (será assim o nome?!...), em Viseu, durante o tempo em que prestei serviço militar (1970/71?). Penso que participava em tertúlias com Jaime Gralheiro, Peliz (e às vezes o Bica!) Também se interessava por teatro e por cinema. Um outro indivíduo (para além do Carrilho que na altura estudava no 7º ano) que por lá passava era o Bandeira que escrevia sobre cinema.Será que a minha memória não me atraiçoa e cruzamos já uns com os outros?!...

Amélia disse...

Que bom reencontrar ex-alunos do Dr.Simões Gomes. Ele mão era de Viseu -mas de Torres Novas, aqui no único reduto laranja do cont'nente -ou, como diz uma colega,«região autónoma de Leiria»...-)Mas foi longos anos professor em Viseu, o suficiente para me fazer apaixonar pel'Os Lusíadas(o que não era fácil em 1958)e me fazer ler todo o Cancioneiro Geral e quase todo o Gil Vicente(ainda bem -foi a maneira que tive de os ler...).Também foi meu professor de Grego no 7ºano.
Manteve-se sempre de enorme lucidez até final -via-o pels cartas que trocávamos em cada natal.
Mas saiu de Viseu bastante antes - nos anos sessenta e poucos -para ir para o D.João de Castro.Portanto não deve ter sido ele quem o Compadre Esteves conheceu...
Alguns dos seus alunos em Viseu que se tornaram conhecidos foram o Osório Mateus, o Aguiar e Silva e a Teresa Sobral Cunha (estudiosa de Pessoa - e que foi/é minha colega e amiga).Estes aqueles de quem me lembro, tendo o 2ºsido meu professor na faculdade, em Coimbra.

Primo de Amarante disse...

Obrigado pelos seus esclarecimentos. A minha passagem por Viseu foi noutro tempo e noutro contexto. Procurei os livros seus e refiro um "Para compreender os Lusíadas" da Centelha. Estive ligado à centelha no tempo do Sobral.
Um abraço.

Amélia disse...

...então se clahar já nos vimos...Um abraço

Ainda vive em Coimbra?

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Seja bem-vinda, Amélia. Estou totalmente de acordo com a importância atribuída aos (bons) professores.
Uma pequena correcção: Torres Novas não pertence ao distrito de Leiria mas sim ao de Santarém, onde a vaga laranja ficou limitada a 26,4% dos votos.

Primo de Amarante disse...

Vivo no Porto. Frequentei uma pós-graduação em Coimbra e também lá fiz estágio,na Avelar Brotero, mas foram os fins de semana que mais me ligaram à Coimbra do choupal.

Amélia disse...

JCP: TEM RAZÃO...TORRES NOVAS veste de rosa...Leiria, de onde não sou -sou do granito beirão e estiudei, como disse, no ex-cavaquistão -é que virou «região autónoma de leiria» só equiparada à Madeira do Jardim -a parte norte do distrito, sobretudo...Só nos falta aqui um Alberto João...:))
Mas o meu voto só vale mesmo um voto...senão outro galo cantaria...Um abraço, amigo.