22 abril 2005

Au Bonheur des Dames 3ªentrega

O PROVISÓRIO E O DEFINITIVO

"Provisórios" e "Definitivos" eram, no Portugal bisonho de 40 e 50, duas marcas de tabaco francamente populares. Os ricos fumavam "Tip-top", "3 Vintes" ou "Português Suave" e a arraia miúda contentava-se com as duas simpáticas marcas que, aliás, se me não falha a memória, apresentavam uma outra vantagem: vendiam-se em caixas de 12 ou 24 cigarros!

Diga-se, desde já, que, nesses depauperados tempos, não havia no país tabaco de filtro. Mariquices desse jaez estavam reservadas a quem podia abastecer-se no contrabando de "Camel" e "Lucky Strike" ou aos africanistas em férias que se pavoneavam pendurados em "Favel" ou "L M" king size.

A "oisive jeunesse" impecuniosa iniciava o seu "cursus honorum" de fumadora com barba de milho ou, mais raramente, com paivantes sacados da cigarreira paterna. Nas "famílias" o consumo do tabaco só era consentido na maioridade e, às vezes, nem assim. Puxar de um cigarro diante da "patria potestas", sem para isso se obter prévia autorização, era, mais do que uma deselegância, um desafio.

Pelos jardins e passeios viam-se modestíssimos cidadãos a recolher "beatas" que reciclavam em tabaco para cachimbo ou para enrolar em papel onça.

A que vem tudo isto, toda esta desbotada fotografia a preto e pardo de um país e de uma época que, a avaliar pelos debates que pontuam o 20º aniversário do 25 de Abril, nunca existiram?

Permitam-me os escassos leitores que utilize as duas marcas e o que elas significavam na nossa vaga vida para nomear o inominável e dizer o, na altura, indizível.

Os portugueses eram provisórios adolescentes retardados a quem um poder, com todas as características de definitivo, permitia uma existência precária desde que pautada pelo respeito pelo chefe e pela resignação perante a sorte madrasta que lhes acenava com a possibilidade de passar lentamente do maço de 12 cigarros ao de 24 e deste aos de 20 (mas com 20 gramas!). E, se tudo corresse bem, poder-se-ia mesmo (!) sonhar com tabaco loiro e estrangeiro com filtro e tudo.

Os cidadãos eram provisoriamente pobres mas o país era definitivamente grande e, um cartaz mostrava para nosso provisório contentamento e definitivo escarmento da estranja, o mapa da Europa perversa, coberto pelos territórios ultramarinos, o que evidenciava, a quem quisesse ver, a herança que os heróis do mar tinham legado ao nobre (e pobre) povo.

Os costumes sobre ser castos (nem nas praias os cidadãos machos podiam mostrar nu o peito!) eram brandos. A polícia usava bastão e pistola por mera bizarria, a pide cevava os poucos degenerados que prendia a lagosta e queijo da serra e o máximo de repressão que se conhecia era a praticada por uma "inspecção" que multava os portadores de isqueiros que se não munissem da respectiva licença de uso!

No "ultramar" a lusa gente suportava com doce paciência o fardo do homem branco e ensinava os pretinhos a ler e escrever o nome. Ensinava-se também o indígena a trabalhar para ganhar o pão de cada dia, pagar o imposto de palhota, e mais algum benefício da civilização.

Numa Europa, definitivamente decadente e amolecida pelos dólares que escorriam do plano Marshall, alevantava-se, provisoriamente pobre mas honrado, o nobre povo de heróis do mar (os almirantes Américo Thomaz e Henrique Tenreiro), de terra (os três pastorinhos) e do ar (Gago Coutinho e Sacadura Cabral ).

A escolaridade era, desde 1951, obrigatória até à 3ª classe e, com igual força de lei, estava proibido aos cidadãos menos abonados circular descalços pela via pública. Este inútil dispositivo legislativo não passava de letra morta para os agentes da ordem bem como para os destinatários.

Florescia um sem número de actividades que evidenciavam a poupança forçada necessária para se (sobre)viver com decoro. Cerzideiras, apanhadoras de malhas em meias de "vidro", alfaiates especializados em "virar" fatos, amoladores de facas e tesouras que também deitavam "gatos" a uma travessa partida e consertavam guarda-chuvas, costureiras que iam a casa das famílias deitar um par de fundilhos, fazer lençóis e camisas... E isto, tudo isto, tinha, naqueles pasmados anos, um toque de definitivo...ou, se quiserem, uma ameaçadora, espessa e agónica provisoriedade.

Este lento e desalentado rosário de recordações vem a propósito dos 20 anos de Abril e da perda de memória evidenciada por uma quadrilha de órfãos do estado dito novo que assacam à revolta dos capitães os males maiores e menores da época pouco exaltante em que vivemos. Esquecem-se que foram os anos de chumbo que precederam a guerra que condicionaram o resto e mesmo a deprimente euforia caetanista alimentada já a remessas de soldados e de emigrantes, à venda de sol e solo algarvios e baratos e à súbita abertura do mercado de trabalho graças à maciça saída de mão de obra para as franças e araganças e para as matas do império. Bastou um choque petrolífero e quatro gatunos na Bolsa para a provisória prosperidade escorregar do ombro ossudo e anquilosado do país real para este se mostrar em toda a sua remendada miséria.

A presença de um ex-agente da PIDE num debate televisivo excitou um punhado de boas almas habituadas a ver a árvore e a esquecer a floresta. O rufião apenas deu uma voz mais agressiva à algazarra que uma direita que poderá ter falta de inteligência mas que mantém intacta a memória dos privilégios ainda não recuperados e, sobretudo, não esquece nem perdoa o humilhante pânico que a multidão que invadiu as ruas lhe causou.

É nisso que um pensa neste 25 de Abril: a liberdade nunca é definitiva quando os cidadãos só provisoriamente, por ocasião de uma efeméride, se lembram que a desmemória tem dois filhos: a ignorância e a resignação.

Maio de 1994

Entendi que este texto de há 11 anos ainda tem alguma dolorosa actualidade. Não é festivo ou é-o só para quem queira comparar os tempos e os costumes.

3 comentários:

josé disse...

Mais uma vez, um texto não só belíssimo no estilo, mas também com a fixação sociológica correcta. COncordo com essa visão do Portugal ante-25A.
Não concordo com a visão demasiado estratificada à esquerda, do tipo PCP, tomada desde muito cedo, pelos articulistas urbanos e de experiência pouco diversificada,para além das ruas da capital e que determinaram o politicamente correcto, nas páginas dos jornais e demais redacções.

Até digo mais: é preciso retomar os temas que deixamos atrás, rediscutindo-os de novo, com a intervenção dos actores e não apenas daqueles que só costumam falar de cor.
Quem fala de fundilhos nas calças e de sacolas para a escola de pano azul, sabe muito mais da realidade passada do que aqueles que passaram a vida a sonhar com ladrões do Aljube. Pelo menos sabe uma parte da realidade que evoluiu dos Esteiros de Soeiro Pereira GOmes, vindo já do Aquilino e que nunca foi verdadeiramente contada- em romance ou artigo de jornal.
Os escritores dos sessenta não falaram das bordadeiras de regional; da radionovela Simplesmente Maria; dos aerogramas e das despedidas com lenços brancos, aos soldados que partiam em comboios cheios, a largar fumo preto do carvão das fornalhas e que no Outono tinha um cheiro estranho a erva molhada.
Faltou-nos quem sintetizasse num romance antológico, essa realidade que passou e que para quem a não viveu, nem sequer existe.
A geração dos sessenta não encontrou representante na escrita digno dessa gesta- e é pena.
Ainda iremos a tempo, caro MCR?!

M.C.R. disse...

Ao José respondo em texto mas a si, Camionero da "route 66" vai já que é uma fervurinha. Fumei durante 30 e tal anos. Quando deixei a minha velocidade de cruzeiro ia em quatro maços. Nunca tive tosse nem nenhum dos incómodos tabagistas. Simplesmente fui dar uma volta ao bilhar grande. custou, custou que se fartou. Ainda custa mas valeu a pena. Os cigarros miudinhos de que fala devem ser os Kentucky. Muito apropriados para "El Camionero! Olé!
cordialmente, mcr

M.C.R. disse...

Julgo que o texto saiu com a letra assim por intervenção da administração. Pelo menos penso que o escrevi com a letra do costume.